quarta-feira, agosto 26, 2009

VERTIGEM E SIGNIFICAÇÃO


7

Na história coexistem ou sucedem-se, não sem disputa, tentativas de fixar pontos, tentativas de freio, resgate, transcendência... Nos bastidores de cada tentativa é comum se encontrar, entre as molas propulsoras do querer, uma sedução do inédito. Ora, a sedução do inédito é uma variante da sedução do poder. A sedução do poder denota incompreensão. Toda incompreensão neste molde resulta do "Não olhe para baixo!". Mas haveria algum desvio do olhar com franca possibilidade de sucesso? O gesto de Galileu  com o telescópio não conteria uma sugestiva precursão? Não conteria o prenúncio de um total ineditismo em relação ao modo de olhar e ver, e, portanto, de um desvio bem-sucedido? Não seria, enfim, a promessa de uma verdadeira potência e de um belo travar de pneus contra a Gravidade?

domingo, agosto 16, 2009

VERTIGEM E SIGNIFICAÇÃO

6
O possível impossível. O homem, que surge da tensão entre ser e Nada, marcado ontologicamente por ambos, é nesta condição. É esta situação. Ele é isso. O possível impossível. Conseguirá nosso moribundo afinal reverter tal sentença? Conseguirá ele mudar seu isso? Conseguirá enfim arrancar o punhal que traz desde sempre, e a se enferrujar cada vez mais, cravado ao peito? E, caso consiga, ele não se cravará outros? Caso o consiga... ele ainda será ele?

domingo, agosto 09, 2009

VERTIGEM E SIGNIFICAÇÃO


5

Enquanto simples projeto, o sim constitui um dever-ser. Enquanto realização, o sim, almejado como absoluto, traz a marca do relativo, consequência do Não que lhe pesa como fardo. Fado! Tem-se aqui então uma nova compreensão do dever-ser, em que o ethos corresponde ao querer eliminar o perigo de ser: a queda-livre que condiciona o ser sempre em perigo. Daí se poder afirmar que toda doutrina, escola, movimento, feito - dos mais adocicados e belos aos mais amargos ou intoleráveis conforme uma e outra sensibilidade -, quer um ponto-fixo. O ponto-fixo. A estabilidade. O fim da história. O dever-ser. Mas todo sentido procede da Queda... Uma tentativa de ponto-fixo é então um sentido contra-sensual. Ilusão. Trabalho de Sísifo. Idiossincrasia...

sábado, agosto 01, 2009

VERTIGEM E SIGNIFICAÇÃO

4
O Abismo e a Queda mostram-se ao homem na forma de um absoluto Não. E assim como o náufrago consulta ondas e horizonte em busca de resgate, o homem, em sua trajetória de queda, nada faz senão querer e projetar o sim. É aí que se encontra a fonte de todo projetar e a mola de todo produzir. Terá sido a percepção do Caos, da decrepitude que lhe arrasta e consome, o que levou o homem a conceber a Ordem. O Não é fonte de todo sim. Não foi admiração ou espanto frente à ordem natural quem gerou o filosofar, por exemplo. Mas outro pathos. Foi o sentimento do Caos! Foi o desespero da Queda quem levou o homem ao projeto do Belo, da Harmonia, do Cosmos, da Idéia - ao sim! Pura carência! Pura miséria! Não há sentido que não tenha por base uma vontade de Sim. Supremo esforço de negação ao Não, o sim é síntese de todo e qualquer significado. Mas nenhum sim é mais que tentativa (a tela, frg. 1, é arredia a qualquer cor). Da produção da mais rudimentar ferramenta de pedra à mais refinada abstração, tudo procede deste confronto asfixiante com o absoluto Não. Todo sentido nasce da vertiginosa trajetória de queda. Do Abismo! Na expectativa do "Pan" final. É do Não Nada - que surgem o dever-ser e seu igualmente pálido sósia: o Ser.

sábado, julho 25, 2009

VERTIGEM E SIGNIFICAÇÃO

3
No que respeita ao homem, cujo ser é sempre em perigo, só o abismo, a queda e a vertigem não são idiossincrasia. O conjunto das idiossincrasias atende por nomes como história, cultura, realidade... Mas o abismo, a queda e a vertigem não são idiossincrasia: são absolutamente. E, no entanto, dado tal absoluto constituir o perigo que espreita e engendra especialmente o ser do homem, Ele não é, como para o idealismo tradicional, um em si e para si, mas um em mim e para mim do homem. Não obstante tal intimidade, o homem tende a silenciar ou desconversar sobre o abismo e a queda. Seu objetivo, contudo, não é guardar segredo: é negá-los, graças à vertigem que o desespera. Sob tal pathos, o homem se entrega então, num poético desvio de olhos, à história e seus correlatos. Almeja com isto um resgate. É pois nesta vã esperança que consiste a ilusão, e não propriamente na história e seus correlatos. Estes, enquanto idiossincrasia, e enquanto poiésis, não pertencem ao campo do que se costuma chamar “não-ser”. São, antes, sintoma ou signo de um modo especial de despencar: modo decorrente do revirar de olhos, que, todavia, está ligado à ameaça de não ser.

domingo, julho 19, 2009

VERTIGEM E SIGNIFICAÇÃO

2
Cair no precipício é próprio do homem. Este cair não se expressa como sujeição à lei da gravidade. O precipitar-se da pedra, que por alguma causa se desprendeu da montanha, não tem a ver com o do homem. Para este, o cair não resulta de um desprendimento, de um soltar-se do meio protetor: tem a ver com o ser sempre em perigo. Nascer é cair. A queda é sem resgate ou transcendência. Ante ao cair assim descrito o homem sente-se mal. A vertigem gera ilusões. Resgate e transcendência têm muitos nomes e sentidos. Ilusão é o significado último de todos eles. Ilusão é paliativo pelo qual o homem fecha os olhos à queda. É como diz a si mesmo: “Não olhe para baixo!

quarta-feira, julho 08, 2009

VERTIGEM E SIGNIFICAÇÃO

1
Milênios de artefatos materiais, mito, arte, religião, filosofia, ciência e vulgaridade: ilusões do pintor que tira pincéis da própria carne e tintas do próprio sangue. Mas, carne e sangue, não é ele mesmo quem, sabe-se lá por que via de milagre, fabrica? E para quê? Para, obsessivo, esfregar na tela arredia a qualquer cor!

sexta-feira, maio 15, 2009

LA PROMESA DE LAS NUBES


Neste antecipado bafejo de ar, quantos perigos ocultos! Quantos perigos! Oh! Quantos perigos... Estarei pronto para nova empreita? Quero realmente tornar ao lombo de Rocinante?
Pode ser que a venda nos olhos esconda um truque, e o cavalo que me leva entre nuvens não passe de um qualquer tronco selado... Quanto ao vento no rosto, talvez seja apenas um artifício daquele que, divertido, me engana. Mas, que importa? Vento no rosto é o paraíso de todo cavaleiro!
Donzelas em apuros, alegrai-vos! Males do mundo, tremei! O velho cavaleiro, lança em riste, retoma sua armadura! Eia!

quarta-feira, fevereiro 18, 2009

O CHORO DE XANTIPA

La mort de Socrate (Jacques-Louis David)
No alto da colina, aos pés da deusa, a viúva contempla a cidade. Ruas, monumentos, ágora... Visões que lhe são como punhaladas.
Foi com dificuldade que escalou o monte, o filho pequeno seguro por uma das mãos. Este, como se compreendesse as lágrimas surdas da mãe, de nada reclamou.
Lá em baixo a cidade prossegue o ritmo cotidiano, agora aliviada do enorme peso de Sócrates.

quinta-feira, setembro 25, 2008

O homem sentou-se na pedra, cruzou as pernas e consultou as horas. Considerou ser tarde. Olhou a pedra sob o corpo. As nuvens acima. Suspirou. Ao longe, alheio àquele homem entre pedras e nuvens, um pássaro voou.

terça-feira, agosto 19, 2008

ANIVERSÁRIO-SURPRESA PARA NETUNO

Do sol, apenas meia laranja se pode ver. À outra parte, devorou o mar. Sobre o arquipélago de pedras o coral de sereias repassa o último ensaio.

domingo, março 09, 2008

QUANDO TÍTULOS NÃO SÃO BEM-VINDOS


Transito por entre a multidão frenética como o morcego entre galhos do arvoredo. Se não esbarro em nada ou ninguém, devo-o à minha constituição peculiar e, sem falsa modéstia, a um talento muito especial. Não esbarro, e atendo a todos com a maior presteza. Não a maior possível, mas a maior. Não fosse por minha gravata e as sobrancelhas projetadas que me servem de barbatanas, o sucesso de meu trabalho seria inimaginável. Mas nasci assim, magérrimo e com o pescoço ideal para gravatas borboleta. Assentam em mim como em ninguém mais. Minha gravata é meu passaporte. As sobrancelhas, meu radar. Além disso, sou lépido e atento. Tenho um conjunto motor de invejável agilidade e pés que por muito pouco voariam. Na maior parte das vezes, me antecipo à intenção de quem deseja pedir algo e já lhe satisfaço. Vê-los boquiabertos é prazer indizível e minha mais grata recompensa. Não sei se isto – o antecipar-me - tem a ver com alguma arte secreta de minhas sobrancelhas, que se já me servem de radar para reconhecer corpos no espaço físico, bem poderiam também captar-lhes, no metafísico, as intenções. Mas desconfio. E pensar que em menino minha constituição e sobrancelhas já temperaram as mais gostosas gargalhadas...

sexta-feira, fevereiro 08, 2008

QUESTÃO DE FÍSICA


Imagem encontrada na internet
Enquanto não era um deles eu os observava. Eu os analisava. Eles eram ridículos em tudo. Se alguém me flagrasse com os dedos a acariciar o queixo e com as sobrancelhas franzidas, podia estar certo: eu pensava neles, eu pensava mal deles. Então, um dia, eles tiveram a ridícula idéia de me dar um cavalo. Aceitei meio sem jeito, por educação. Com um grunhido me indicaram que montasse. Por educação, montei. No primeiro galope, a que me submeteram com uma tapa na traseira do animal, me senti um deles. No segundo, eu já era um deles. Agora, como carne crua e não saio do cavalo para quase nada. Sou um deles e nos acho formidáveis!

sexta-feira, janeiro 18, 2008

SALMO 151


Gravura de Osvaldo Goeldi encontrada na internet
Quando virou a esquina o homem se desconheceu. Evidentemente, não pensou em dar um ou dois passos atrás. Ter-se-ia reencontrado, caso o fizesse. Mas sua nova condição não lhe permitiu, sequer, o raciocínio de retroceder. Então, ante o absoluto da novidade, ansiou, ímpeto inconsciente, por quem o tomasse pela mão. Ora - e isto ele também já desconhece -, mas não foi justamente para estar só que dobrou a esquina? E agora, ante ruas mal-iluminadas,  cachorros e gatos de beco, insetos de esgoto, automóveis, prédios e gente apressada, o homem, ato instintivo, despe-se e, como se fosse um nadador profissional, submerge noite adentro...

sábado, janeiro 05, 2008

UMA ESTRANHA PONTE


Porque um sujeito falaria algo inteiramente fora de propósito a seu interlocutor?
Ambos conversavam sobre castores, essa história de esconder pinhas e depois não lembrar o lugar, etc.
Terá sido por isto, por uma espécie de osmose do esquecimento [de pinhas por castores], e o sujeito esqueceu o assunto?
Às verdadeiras razões ninguém jamais chegará. É que os dois, após o despropósito, enlouqueceram. O interlocutor, pelo esforço supremo para entender o amigo. Este, ato contínuo, ao ser absurdamente recriminado pela própria consciência em decorrência do dito.
Agora, toda a cidade, que não os compreende, embora os conheça bem, vê ambos a caminharem sempre juntos, ruas e praças afora, como dois grandes amigos que se desconhecem.

domingo, dezembro 09, 2007

UM POUCO DE METAFÍSICA


Sou mesmo um cão raivoso e danado: reconheço meu destino e temperamento. O que a experiência da sensaboria tem a ver com temperamento?! Mas não sou danado e raivoso no sentido que me impingiram aqueles do açougue. Não, não. Gente incorrigível... Uns à beira da morte! E pensar que eu não fazia questão de carne, nem mesmo de osso fresco! Uma carcaça ressequida de burro já me seria um manjar. Mas eles... Por isso não contive a raiva... Distribuí mordidas a deus e mundo! E as fiz correr como a serpente ao rebanho de vacas! Sei muito bem aonde vão todos... Sou como o cão escavador de fossas que encontrei à beira da estrada. Disse-me ele: “Sabe, conheço melhor que ninguém a essência humana.”.
Às vezes tenho vontade de ser um porco gordo e rosado. Mas ser um cão, ainda que em minhas condições, tem lá sua importância. Prefiro ser um cão danado e raivoso a ser um porco, principalmente após ver dois infelizes a quem se amarraram pés e mãos, por onde se enfiou uma vara e transportavam até o açougue.

quarta-feira, agosto 29, 2007

HIPERTEXTO QUASE UNILATERAL


Fotografia de Edilson Pantoja
“Posso ajudar em alguma coisa?”
“Acho que não.”
Mesmo assim ela sentou-se a meu lado na mureta que deixava nossos pés a mal tocarem a grama. Não disse mais nada. Eu também não disse. Apenas olhei na direção oposta. O vento agitou as árvores, de leve, antes de chegar a nós. Derrubou folhas. Quando passou, era todo café fresco. Pensei no caldeirão de ferro em que se torrava café. Vi mulheres em dupla à beira do pilão, o pu-pu-pu alternado das mãos de pilão. O vai-vém de ancas e saias sob a cantoria secular vinda do Maranhão. Revi o cafezal que rodeava a casa de meu avô. Ouvi-lhe a voz grave num ralho pleno de anteontem. Andei de novo à sombra das mangueiras do caminho. Pensei em pães quentes, manteiga derretida, e flechas de malva... Desconheço em que ela terá pensado. O certo é que ficamos, por todo o resto das horas, a ver o sol deslizar vermelho sobre a baía.
Nossas mãos tocam-se sobre a mureta. Nossos pés roçam a grama. A noite caiu de pára-quedas. Veio só. Se quisesse, bem poderia trazer consigo o fim do mundo...

quinta-feira, agosto 16, 2007

UM CASO FENOMENAL

Minha rara habilidade, ante a qual todos restam boquiabertos, tem uma origem insuspeitada. Quem poderia desconfiar? Nem mesmo o mais astuto dentre os circunstantes – que a todo tempo se aglomeram frente à jaula para me ver - pode supor. Eis porque, confiado na ignorância coletiva, dou-me a liberdade de gargalhar até as lágrimas. Mas não se pense que é por sarcasmo ou abuso da sã curiosidade. É que me soa divertidíssimo ver todoas essas pessoas a se acotovelarem como se diante de um milagre. Sou um milagre, confesso. Mas minha verdadeira habilidade não está no que tanto admiram: está em não revelar meu segredo! Caso o soubessem, passaríamos todos despercebidos uns dos outros. Caso o soubessem, seríamos uma banalidade qualquer. Mas, francamente, caso o soubessem, eu seria esfolado vivo... Entraria para a História na forma de um capítulo tabu.

sexta-feira, agosto 10, 2007

BATALHA NAVAL

Mal abri a janela, Mariana saltou outra vez de dentro de mim. O rosto voltado para trás a me olhar de longe, o vinco de dor mais suposto que visto entre as sobrancelhas...
Como o lugarejo de nossos dias envelheceu! Pessoas, casas e até ruas inteiras já não existem. E se eu mesmo ainda permaneço, embora entre rugas, devo àquela lembrança, bafejo de eternidade que me afaga o ser.
Mariana está sempre comigo, mas em nenhum instante tem mais cor do que quando, pela manhã, abro as janelas. Mal as abro, e ela já na distância do barco, a me ver... Então me entrego, horas, a fitar o rio e travar com ele esta nossa guerra de cinqüenta anos. E meu olhar, como se fora um canhão – desses de filmes de pirata – se põe a lhe atirar as mesmas perguntas, projéteis de minha dor: “Nunca mais? Nunca mais?”. Ao que ele, em sua carreira sem pressa, mas resoluto, como a conduzir aquela mesma embarcação, lança-me também os seus: “Nunca mais! Nunca mais!”.

quinta-feira, junho 14, 2007

A REVELAÇÃO

O homem pára de repente. Olha para o céu. Nuvens enormes ameaçam. Não há mais ninguém em lugar algum? O homem esqueceu os óculos sobre a escrivanhinha, sobre o último livro. Com os óculos, o título do livro, o nome do autor e as últimas palavras lidas. Todas as palavras lidas. Todos os livros. Todas as coisas. O homem é o último. Demorou-se justamente por causa do livro, e agora, sob as nuvens, a rua deserta, já não sabe do que tratava. Todos se foram enquanto lia. Como pôde esquecer dos óculos? Agora só uma coisa interessa. A fuga. É preciso fugir. O homem quer voltar e apanhar os óculos, relembrar o esquecido – o que mais esqueceu?, mas é preciso fugir como os outros, como todos. E, no entanto, só. É preciso, máxima urgência, abandonar-se de vez.