domingo, fevereiro 25, 2007

O Mal de Ester


Ester era crente e amava a Deus com todas suas forças. Sim, porque há os que crêem com todas as suas forças e não o amam, e os que o amam e não crêem com todas as suas forças. Há ainda os que com todas as suas forças nem crêem nem o amam. Mas Ester, não. Ester era exatamente aquilo. Ester era linda e queria casar. Orava a Deus todos os dias por um marido que lhe fosse digno. Orava e jejuava e fazia campanhas. Ester era voluntária e tudo fazia para agradar a Deus. Sabia em detalhes a história da outra, esposa do rei Assuero que dominou cento e vinte províncias, da Índia à Etiópia. E a tinha por heroína. Queria ser como ela. Fiel a Deus e ao marido que esperava ganhar. Mas um mal, que a rapariga repudiava com todas as suas forças, embora sem sucesso, plantou-se em sua pureza. E, por ele, temia não ser mais digna de Deus e do marido digno. Ester duvidava, vez por outra, malgrado seu, de que fosse necessário ofertar tanto dinheiro ao Senhor e ter nisto o termômetro de sua fé. Abatida nos momentos de remorso e culpa, Ester se sentia a pior entre os filhos de Deus, próxima dos de Belial. E já não orava a Deus apenas pelo marido, mas por um livramento. Ester tornara-se cativa de Nabucodonosor.

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P. S.: Criei três historinhas de inspiração bíblica. No topo do Ararat
, já vimos. O Mal de Ester é a segunda e há uma terceira, chamada A Insônia de Judas, que vem por aí. Trilogia? Nome pomposo demais. Quanto ao manuscrito do Sagaz e Destemido, temo publicação. Trata-se de um texto inconcluso de aproximadamente dez capítulos, o que vai exigir do leitor um acompanhamento e uma expectativa de final, que não há (ao que tudo indica, o pote encontrado por Seu Afonso na Serra Grande continha apenas parte da narrativa, de modo que é muito plausível supor a existência de outros até agora enterrados e perdidos). Daí minha resistência em publicá-lo. Bom, mas quem sabe depois da tal trilogia? Abraço forte em todos!

terça-feira, fevereiro 20, 2007

No topo do Ararat

Arca encalhada no topo do Ararat, Noé, mãos cruzadas nas costas e chinelos bíblicos, caminha no convés a respirar o estio. O sol alveja ainda mais a barba e cabelos do velho patriarca, que quase se confundem com as nuvens do horizonte. Enquanto o vento lhe balouça o vestido, o ancião de seiscentos anos aprecia o porvir. De repente, tira do bolso uma bilha de vinho, primeira safra de sua primeira plantação. Retira a rolha e sorve, por um instante maior que quarenta dias e noites, o aroma do velho mundo. Lá de dentro, o balido das cabras, mugido de vacas, gritos de macacos e outros bichos mais, lhe dizem que os filhos não lhe ouvirão, ainda que grite. Então retira de outro bolso o walkie-talkie e faz contato com Sem, na sala das máquinas: “Toda a potência de todos os seis mil cavalos!”. O filho não entende, mas obedece. Um segundo depois, o contatado é Jafé, o timoneiro: “Vire a estibordo, vamos desencalhar!” Finalmente dirige-se a Cão, que, de compartimento em compartimento, distribuía feno e limpava a sujeira dos animais como castigo por ter visto o pai bêbado e nu, certa feita. O filho estava no primeiro pavimento: “Venha ao convés!”. Instantes depois, pai e filho brindavam, reconciliados. Desfeito do pesado vestido, Noé foi tomar sol apenas de ceroula. Respeitoso, o filho não o olhava, mas o coração de ambos seguia em paz enquanto, a todo vapor, a arca livrava-se do Ararat.

quarta-feira, fevereiro 14, 2007

O Mambembe

- Mas... E tua família? Tu tens família lá em São Paulo, não tens? Ou sempre foste assim, só, e de um lugar para outro?
- Tive... Você quer ver? Ligue para esse número. Pergunte por mim.
...
- Alô?
- Alô! Bom dia! Eu sou amigo de cicrano. Tem um tempo que não falo com ele. Ele se encontra?
- ... Quem deseja?!
- É fulano. Sou amigo de cicrano. Queria falar com ele. Você é a esposa dele?
- Olha, moço, cicrano... faz muito tempo que ele não dá notícia. Não sabemos nada dele...
- Desculpe! Obrigado!

Devolve o papel com o número de telefone para o ator, que o recebe a esconder o rosto e os olhos úmidos.

terça-feira, fevereiro 06, 2007

O SAGAZ E DESTEMIDO: A HISTÓRIA DO MANUSCRITO


Meu primeiro contato com a história do Sagaz e Destemido ocorreu em dezembro de 1979, através de seu Afonso, velho pescador de Marajupema, com quem eu gostava de passar férias escolares. Era madrugadinha. Salpicado de espuma, o rio deixava subir aquela neblina fresca de tranqüila evaporação. Íamos despescar as malhadeiras, redes de pesca, da boca do Coraci, cerca de um quilômetro acima do porto. Seu Afonso na frente, eu no piloto do casco. Entre uma e outra baforada do porronca, cigarro brabo, e algum descanso do remo na borda, falou do vaso que, tempos atrás, bote tempo, encontrara enterrado na Serra Grande. Dentro, tabuinhas de argila onde se cunhara ou pintara estranhas letras. Seu Afonso era experiente, íntimo das visagens de fora-de-hora. Me falava vez em quando das coisas que via. Os mistérios.
Falou da tradução feita por Tanurú, um kaapor seu amigo lá de cima, das aldeias. Depois, em casa, ante a insistente curiosidade de meus dez anos, mostrou-me, cheio da cerimônia com que sempre mexia nos guardados ou defumava as malhadeiras, mostrou-me uma, só uma, das tabuinhas. Vi a escrita e, de longe, o velho vaso sujo de tempo.
Mostrou também o que, ouvindo a tradução oral de Tanurú, garranchou a lápis no velho caderno de fiados da cachaça, querosene, açúcar e coisas mais que vendia aos caboclos. A história ficou. A lembrança junto com a dúvida. Passou-se.
Mas em 1997, quando Diários Índios foi lançado, livro onde Darcy Ribeiro narra a viagem que fez em 1950 às cabeceiras do Gurupi, inclusive, a passagem por Marajupema (p. 79), eis que me aparece ninguém mais, ninguém menos, que Tanurú, a quem Darcy Ribeiro chama carinhosamente de intelectual índio: “Esse Tanurú é outro caso extraordinário de um intelectual índio. Pequenininho, feio, tem uma mente luminosa. Domina, como ninguém, o patrimônio mítico de seu povo e é capaz de dizê-lo da forma mais clara e sensível. Aprendi com ele, com Anakanpukú e outros índios com quem trabalhei, a apreciar e admirar esses intelectuais iletrados. Eu os conheci também entre lavradores e pioneiros pobres, ainda que menos vivazes, porque dominados pela idéia de que os saberes pertencem aos doutores. Intelectual, para mim, é pois aquele que melhor domina e expressa o saber de seu grupo” (p. 546).
Pois, sim, anos depois, dado meu interesse pelo mito de Atlântida, mito cuja fonte ocidental mais remota é o Timeu, de Platão (séc. V a. C), me deparei com um livro de Berlitz onde, numa das páginas (138), se mostra, para efeito de comparação, antigos escritos encontrados no Vale do rio Indo (Paquistão, Ásia), e escritos, também antigos, achados na Ilha de Páscoa, datados de não poucos milhares de anos. A ilha de Páscoa fica no oceano Pacífico e pertence ao Chile! A escrita que vi na tabuinha, lembro bem, tem grande semelhança com as destes escritos...
Com isto quero advertir que nem a história a seguir, nem o texto, são meus. Eu os recebi em 2004, quando, após vinte anos sem ir a Marajupema, lá tornei para rever parentes e velhos amigos, pouquíssimos, ainda vivos. Seu Afonso, desde os anos noventa, não mais entre eles. Antes de morrer, entregou a meu padrinho, hoje com noventa anos e muito parecido com mestre Verequete, um pequeno embrulho e o pedido de que não se o abrisse e só a mim fosse entregue, caso lá voltasse. A gente antiga, sabe-se, costuma respeitar essas coisas. Ainda mais se recomendado por seu Afonso...
Devo dizer que apenas tomei a liberdade de, não sabendo como escrever ou pronunciar o estranho nome do Sagaz, chamei-o pelo que mais próximo me pareceu. A história, como à frente se verá, foi escrita por um dos que o acompanharam (como Lucas a Paulo) e cujo nome também alterei. Sobre o manuscrito de seu Afonso, é triste dizer que, dia desses, a moça, desavisada que é, julgou sem importância o velho e roído caderno encontrado no chão, rente a minha mesa, e não pensou duas vezes antes de juntá-lo ao lixo. Eu, que terminara de digitar o teor e saí para algo ligeiro, ainda fui à frente da casa remexer a lixeira, quando retornei. O caminhão já havia passado. Paciência.
Paciência que também peço a ti, leitor, caso estranhes o estilo um tanto empolado ou imperito para teu gosto, alguma extravagância de humor e coisas mais. Não os imputes a mim, mero copista, mas a qualquer dos três - ou ao conjunto - que antes se envolveram com a história: Tanurú, responsável pela tradução; seu Afonso, que a fixou nos garranchos; e O Lendário, que consta ser o escriba original.


P. S.: Por razões de espaço, publicarei aqui apenas esta introdução à História do Sagaz. Abraço a todos!

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

O Imortal


Era meio-dia e meia quando os dois chegaram. Encostaram-se no muro, próximo do largo portão. O mais velho arriou sua forma de isopor na calçada, no que foi imitado pelo mais novo. Logo a carícia no ombro marcado pelo náilon. Ficaram ali, atentos aos que entravam. E como mais de uma hora se passou desde que chegaram, dividiam um picolé. De repente o mais velho cutucou o outro.

- É aquele ali!
- Qual? Aquele?
- Sim, quem mais? Esse mesmo, de flor na orelha e jeans. O imortal. Ih! Disfarça, ele tá olhando pra cá! Quer ver se alguém lhe segue. Puxa! Demos sorte, mesmo!
- Não acredito! Tem certeza de que é esse? Eu juro que não acredito! E acho que não quero mais ver... Vamos embora?
- O quê?! Desistir agora, depois de tudo?!
- Desculpa, mas acho que tô com medo...
- Não te preocupa. Ele não faz mal a ninguém. É sabido demais para machucar alguém. Dizem que tem dois mil e quinhentos anos.
- Quem diz?
- Ah!, não lembro! Dizem por aí.
- A história da água?
- Sim. A história da água... Ele bebe a si próprio. Sempre. Por isso não morre. Olha!, tá virando a esquina que dá para o horto. Vai ser agora! Pshh! Vem, vamos lá. Vamos ver. Não vais acreditar. Eu também não acreditei quando vi a primeira vez.
- Tô tremendo. Acho que não vou conseguir olhar. Vou fechar os olhos.
- Não! Abre! Olha lá! Não falei? Ele tá se engolindo... Meu Deus!
Enquanto o imortal se engolia, os meninos, perplexos, vomitavam o picolé.