terça-feira, março 13, 2007

Olhos de ribeirinho-não-mais-e-ainda-sempre

O menino, a lembrar um socó na beira do rio, equilibra-se, como o pássaro nos galhos secos dum pau caído, sobre a guia entre a ciclo e a rodovia. Um mísero espaço quase-seguro rente à bocarra descarnada do perigo. O socó sai do galho quando uma piaba reboja à flor d`água. O menino, quando o sinal cor-de-esperança fecha e o cor-de-sangue abre. Ambos têm um nada de tempo. O socó voa, mergulha e retorna ao galho. Piaba no bico. O rio respira a paz no silêncio dos estirões. O menino salta da guia para o asfalto. Malabares enormes na mão pequerrucha. O asfalto respira o ar quente das máquinas tensas ao sol do meio-dia. Às costas do menino, que se atrapalha com as peças, o sinal cor-de-medo acende.

domingo, março 04, 2007

A INSÔNIA DE JUDAS


Judas dorme na rede? Bem, isto não é importante. Cama, chão ou rede, a verdade é que Judas não dorme. Passa a noite a virar-se de um lado a outro, o suor a correr no pescoço entre nuvens de mosquitos pontiagudos como pragas do Egito. Judas não tem mosquiteiro nem ventilador. Pensa nos versos do salmista: “Deito-me e pego no sono; acordo, porque o Senhor me sustenta” e o inveja. Não é uma inveja má, se é que existe inveja que não seja má. É que inveja mesmo Judas sente é em relação a outras coisas. Diante daquela mansão do clérigo, por exemplo. Nossa, de quem é esta casa?, perguntou boquiaberto. É do clérigo, alguém respondeu. Caramba!, onde o clérigo arrumou tanto dinheiro? A casa um esplendor. Três pavimentos em estilo moderno num condomínio de luxo. Quatro carrões na garagem. E o jardim? Lembra o paraíso. O clérigo e sua mulher, seminus à beira da piscina, são como Adão e Eva no Jardim do Éden. A mansão celestial. “Jerusalém, que bonita és! Ruas de ouro, mar de cristal!”, volta a musiquinha no juízo de Judas, que sua e se abana sem sucesso contra o calor e os mosquitos. A noite não passa. Judas levanta-se. Caminha até a janela. Abre. Dá de cara com hordas de mosquitos a entrarem num sopetão como soldados de Herodes. Olha pro céu de repente. Conta estrelas. Uma, duas, três, quatro... trinta. Trinta estrelas brilhantes, como as trinta moedas de prata que ganhou, preço da traição. Judas suspira. Trinta moedas.... Mas o que foi que eu fiz?, diz para si enquanto, o coração cheio de inveja e arrependimento, pensa no clérigo, que certamente soube vender o Mestre por preço infinitamente melhor.