sábado, setembro 29, 2012

À IMAGEM E SEMELHANÇA


Olhar o vazio com fome de pleno. Olhar o azul com fome de céu. Olhar o outro com fome de próprio. Fazer-se mundo. Membrana. Pele que tudo conforma. Fora de todo dentro. Fazer-se nuvem da nuvem. Ser-poeira da poeira. O todo do todo-nada. Auto-aparição assutada. Fulgurar-fantasma. Eu sou! Tu és? Ele é? Nós somos? Vós sois? Eles são? “Que outro Deus há além de Mim?”

domingo, setembro 23, 2012

DE ONDE VÊM OS FANTASMAS


Como o rosto que riu além da anedota e agora precisa voltar ao blasé, nós, que quase passamos da estupefação ao bocejo em poucos séculos de marcha da ciência sobre o Mistério, temos hoje o desafio de não deixar a expressão cair de vez. É preciso ainda ver sentido na ciência. Nossa luta agora é contra o Tédio. Então, homem de meu tempo, guardião de nossa máscara de Monalisa, é com boa expectativa que de minha janela, binóculo regulado, foco os velhos telhados lá em baixo. A ciência quer avançar sobre eles (sobre os fantasmas que lá brincam em dias de sol). Só lhe falta pequeno passo. Uma equação em teste por cientistas do MIT, a envolver matemática, física, ótica e um quê de solidão (a quantificação deste é o que ainda lhe resiste – até quando?) pretende explicar porque fantasmas preferem velhos telhados para orgias. Dizem (na verdade não dizem e tive que supor tudo sozinho) que quando diversos fatores de luz, temperatura e solidão se combinam, o fenômeno ocorre. Pode acontecer mais de uma vez no ano ou demorar eternidades entre uma vez e outra. Mas se algum dia o sol não está tão quente e o céu nem tão claro e se o vento não é mais que morna brisa, e se, além disso, algum solitário os olha do alto, então poderá ver, às nove e meia, fantasmas (nada discretos!) a se reproduzirem sobre velhos telhados. São nove e vinte e nove. A condição subjetiva me parece ideal. Lá fora, salvo engano, tudo de acordo. Se todas as variáveis realmente se combinam, então logo-logo terei boa dose de anti-tédio.

segunda-feira, setembro 17, 2012

O CAMPEÃO

Fotografia de Edilson Pantoja
Seu juízo rodeia o mundo preto-e-branco. Mas do alto a terra é uma peteca azul. Em torno do ringue vampiros berram impropérios. O último soco lhe tirou toda esperança de estabilidade e o inchaço avança sobre o último olho. A quentura do sangue lhe percorre a face. Afago da morte. Braços trêmulos tentam erguer o corpo de mil toneladas. O juiz chega ao meio da contagem. Enquanto viva a mãe nunca aprovou a profissão. Ágil de pernas, o adversário saltita a seu lado. Resta-lhe o último fôlego. Erguer-se é optar pelo definitivo. Deitar-se também.

quinta-feira, setembro 06, 2012

O OITAVO DIA


No princípio era Silêncio... 

Sete dias sobre a Terra. Na Terra. Nela. Um com Ela. Sono profundo.  Sonho inacreditável... 
Sonhou-se terra. 
Era a própria terra a Sonhar-se. Escura. Úmida. Una. Tudo Ela. Ela, todas as coisas dormentes. A Terra em sono profundo. Em sonho a sonhar-se...
Então, o sonho da terra trouxe mãos. E as mãos entraram na Terra. Rasgaram. Dor indizível. As mãos a rasgarem a Terra. Abrirem a Terra. Uma porção da terra as mãos tiraram. E à porção as mãos amassaram. E a porção da terra sonhava-se amassada nas mãos, entre os dedos, a formar-se sonho. E a porção da terra era Ele. 
Era?!
Sete dias sobre a terra Ele sonhou-se Terra. Terra primitiva. Terra sonhada pelas mãos que ele sonhava. No alto da montanha, a olhar o abismo aberto sob os pés, Ele se pergunta: Era?
Terrível, o sonho. Terríveis, as mãos. 
Mãos de fogo. Ágeis. Rudes. A moldarem o barro. E o barro virou-se cabeça. Virou-se pernas. Membros. Órgãos. E as mãos a moldarem mãos. Mãos de sonho... Mas então acorda. 
Dormira? Outro sonhar diante de si? Ou pesadelo?  Não sabe dizer. Posicionar-se ante tantas imagens. Reconhece de pronto, não obstante, tudo muito amplo. Sua capacidade com as imagens. Amplo. Algum tipo de lembrança? Própria? Inventada? Não sabe dizer. Posicionar-se ante as imagens. Diante de si a mão do cirurgião-robô dá o último enter para a configuração de seu novo cérebro. Cérebro eletrônico. Sintético, como também é agora sua pele. 
O gesto do cirurgião lhe provoca breve tontura, após a qual vê, ao lado da mesa cirúrgica, o cérebro orgânico recém retirado. Encontra-se revestido por um tecido transparente e comprimido numa espécie de tubo de ensaio cujo rótulo, também eletrônico, mas ainda em branco, aguarda catalogação.




quarta-feira, setembro 05, 2012

INTRUSOS



Escoraram-se na parede de tábuas rente à calçada entre gargalhadas. Farofa de amendoim saltava-lhes boca afora quando uma porta se abriu a suas costas. O tombo os empurrou para o ambiente atrás dela. Pouca luz. Fumaça de cigarro. De pronto, oito olhos os encararam desde a mesa no centro da sala. Um dos pares de olhos congelara no ar o corte do baralho. Dois outros trocaram cartas furtivas sob a mesa. Um dedo indicador lhes ordenou silêncio. De repente um clic atrás da fumaça. Os dois meninos correram de volta à rua e só pararam três quarteirões depois. Pulmões em brasa. Corpos vergados. Mãos nos joelhos. Corações boca afora.

terça-feira, setembro 04, 2012

REZA ANTIGA LENDA



babilônica que o pai da poesia nunca foi Prometeus, mas Enki. Também sugere que Moisés e Hesíodo, que nunca se deram bem, foram condenados ao silêncio pelos séculos dos séculos sob pena de darem fim ao mundo se um dia falarem. Sobre Homero, que na verdade nunca foi grego e se chamava Gulalak, palavra de raiz suméria que significa louco, se lhe atribui o que ele atribuiu a Hércules. Este se chamava Hércules mesmo embora também não fosse grego nem, por suposto, tenha realizado doze trabalhos. A tabuleta cuneiforme com tais informações jaz ignorada num dos salões do Louvre junto a contratos de terra e objetos pessoais de Senaquerib. Crasso erro de catalogação.

segunda-feira, setembro 03, 2012

RUMINAÇÕES DO HOSPEDEIRO



Vozes que nada dizem abrem trilhas em meu pêlo. Pulgas! Bichos surdos e bêbados que andam em turba. Daí o falatório. Nunca darão com a fonte três camadas abaixo da pele. Se um dia descessem, dariam com ela. Voz do sangue. Fonte das fontes. Seria o suficiente. Seria o ideal. Voz do sangue só fala a surdos. Mas pulgas são bichos de horizonte e não de abismo. E não me consta que saibam acolher o inaudível.

domingo, setembro 02, 2012

O EQUÍVOCO


Quando o céu se cobre de cinza ele enseja mostrar-se. Nunca apareceu e o ensejo é apenas imaginado. As pessoas vêm à porta da rua ou ao quintal e se põem a perscrutar. A mão em pala. Olhos no cinza. Ouvidos ao vento. O ciciar é todo som. Mulheres velhas tremulam em êxtase. Novas desejam tê-lo. Homens balbuciam gestos. E até hoje ninguém soube dizer palavra. Como se chama. O que é. Um dia, depois que as nuvens brancas tornaram sobre o azul, um jovem quis escrever. Mas a anciã saltou: escrever autêntico é silencio. Viu-se nisto algo mais que ensejo. E nunca mais se ousou.