Breve histórico de meu primeiro romance:


Em 2004 comecei a executar o projeto de escrever um romance e concorrer ao Prêmio IAP de Literatura, promovido pelo Instituto de Artes do Pará. Conforme edital, o prazo de inscrição encerrar-se-ia em trinta e um de maio de 2005, às duas da tarde. Entre uma aula e outra na rede pública, um mestrado recém-iniciado e o corre-corre da vida (que divido com esposa e dois filhos pequenos – à época, evidentemente, ainda mais novos) eu pensava, lia, observava, imaginava, anotava, escrevia, reescrevia, revisava... Transcorreram-se assim oito meses.


Cheguei ao IAP às 13:30 do dia 31 de maio de 2005 com as três cópias impressas e envelopadas - mas não encadernadas, do romance a que intitulei Albergue Noturno. A funcionária responsável pelas inscrições recusou aceitá-las sem encadernação, necessária, conforme justificou, para facilitar o trabalho de leitura dos jurados e impedir extravios de páginas. Concordei e saí às pressas em busca de onde encadernar. Voltei vinte e tantos minutos depois arquejante, suado, com as três cópias furadas e presas em pastas de arquivo, já que na única papelaria que encontrei não havia arame espiralado. Tudo bem.

Em 31 de julho  de 2005 recebi ligação do IAP informando que o romance fora o vencedor. Foi uma felicidade enorme, logo repetida, naqueles dias, duas outras vezes! A primeira, quando, dias depois, nova ligação do IAP informava que um dos jurados, que ficara bastante impressionado com o romance, pedira autorização à Instituição para fazer o prefácio e me conhecer pessoalmente. A ligação também visava saber se eu aceitava as duas coisas, bem como fornecer meu telefone para a referida pessoa. Sobre o prefácio, concordei mentalmente antes de responder. Quanto ao contato pessoal, bateu uma preocupação oriunda da timidez que me acompanha desde sempre, uma inabilidade social com desconhecidos. Mas tudo bem. Aceitei. A segunda vez foi quando a pessoa me ligou. Tratava-se da professora Juruema Bastos, então já aposentada da Universidade Federal do Pará, onde ocupara a cadeira de Literatura Portuguesa. Muito bondosa, a professora, que eu não conhecia, disse coisas maravilhosas sobre o livro. Palavras que por si só fizeram valer todo o trabalho de escritura. Conversamos por cerca de uma hora e marcamos para nos conhecermos dias depois, o que aconteceu na Casa das Onze Janelas, ponto turístico aqui de Belém. Nós nos encontramos às cinco da tarde e quando demos conta já eram dez da noite. Foram momentos inesquecíveis! Falamos de literatura, filosofia, psicanálise lacaniana, etc. A professora, que também é psicanalista, levara um sobrinho, estudante de psicanálise, que lera o livro e queria me conhecer. No prefácio, entre outras bondosas palavras, ela escreveu: “A publicação de Albergue Noturno é um tributo a ampliar o acervo dos grandes romancistas em língua portuguesa”. O contato com essa pessoa foi um das muitas coisas boas que o romance me proporcionou. A propósito, certo dia, acho que isso tem uns três anos, ela me ligou. Perguntou por que eu não havia ido à palestra sobre Psicanálise e Arte promovida pelo mesmo IAP na noite anterior. O convidado fora o psicanalista  argentino Alfredo Jerusalynsk, que, com base no tema, falara sobre “A imagem do artista”. Respondi que não soubera do evento. Então, ela, bastante empolgada, disse: “Olha, tu perdeste! O Jerusalynsk falou bastante sobre teu livro!”. Mas deixa eu dizer que apesar dessas menções à Psicanálise, esta não foi uma preocupação ou pretensão minha ao escrever o livro.  Tem a ver apenas com possibilidades de leitura, as quais, naturalmente, ficam a cargo do leiror.

Bom, hoje, seis anos depois, quando minha visão pessoal do primeiro romance é bastante crítica, e que meu segundo romance, A Pedra de Babel, aguarda lançamento, o Albergue Noturno, cuja vida de livro tem, desde aquela data, me proporcionado tantas outras alegrias, entre elas a de ter rendido pelo menos um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), termina de me enviar novas notícias. Recebi esta semana dois e-mails, ambos de alunas de Letras da UFPA, que fazem trabalho sobre o romance.
No texto abaixo, originado a partir de perguntas que ambas me enviaram, falo um pouco sobre o romance, etc:

A partir dos e-mails que me enviaram, organizei as respostas conforme a ordem das perguntas, e ficou assim:

1 – Temática:

Falar sobre a temática desse romance é para mim, pessoalmente, um pouco difícil. A razão é simples: eu compartilho da noção de que um livro, uma vez publicado, ganha independência em relação a seu autor, às intenções que lhe deram vida. Ele ganha autonomia. É como um filho que atingiu a maioridade.
Mas quando escrevi o Albergue Noturno eu tinha, sim, algumas intenções. É claro que, como ocorre em todo processo criativo, há forças, não necessariamente intencionais, conscientes, que interferem na execução, no fazer, no criar. Tais forças talvez sejam mais determinantes para o resultado final do que propriamente as intenções, a consciência. A esta altura do chamado Pensamento Ocidental já aprendemos, com Nietzsche e Freud, pelo menos, que a chamada consciência não tem o inteiro governo de nosso agir. E criar é uma forma de ação. Em todo caso, eu tinha algumas intenções. Acredito que a principal delas fosse desenvolver, no interior de uma obra de ficção, uma reflexão filosófica. Um dos temas desta reflexão era justamente a relação entre mito e razão – tema antigo e que tem a ver com a origem da própria filosofia enquanto pensamento racional. Grosso modo, pode-se dizer que a civilização ocidental se constituiu, em sua forma esclarecida, com base numa desautorização da “lógica” do mito. Bom, falar sobre isto de maneira aprofundada levaria bastante tempo. Então, deixem eu dizer que, no que tange a esta “temática”, o romance, na sua forma narrativa, bem como naquilo que é narrado, tenta, de certa forma, recuperar o mito como forma legitima de pensamento. A aventura em busca do “simulacro verdadeiro” tem a ver com isto.
Fora isto, mas buscando manter uma sintonia com a forma do mito enquanto narrativa livre dos ditames racionais, eu também tratei a loucura, o delírio, a imaginação, o sonho – todos elementos oníricos, como eixos temáticos e, porque não dizer?, formais, pois têm a ver com a forma da narrativa. Há também a solidão e a morte. Por estas duas e pela loucura, enquanto algo que dizem respeito ao homem, ao humano, mantenho um sempre vivo interesse.
 Mas, a respeito de tudo isso, eu gostaria de fazer uma ressalva e dizer que concordo com o filósofo Adorno quando diz que o caráter artístico de uma obra se realiza justamente onde esta ultrapassa as intenções do autor. Gostaria também de complementar outra idéia esboçada no primeiro parágrafo e dizer que, uma vez publicado, o livro pertence ao leitor. É este quem, conforme as circunstâncias que o assistem e caracterizam, há de preencher, com o significado que lhe for mister, a forma significante da obra. Esta será apenas uma provocação, uma proposta, mas também um deslocamento.

 2 – Inspiração

 A inspiração do livro está na intenção que lhe deu vida. Mas, é claro, traz também marcas de forças e leituras fundamentais. Uma dessas marcas é o D. Quixote, de Cervantes. Outra, a impossível escritura de Kafka. E outras, como A Divina Comédia, etc.

 3 – Personagens

 Dr. Lutero Dias é egresso de um antigo manicômio que havia em Belém, chamado “Juliano Moreira”, instituição da qual tive notícias na infância interiorana através de uma ou mais conversas de adultos, ouvidas indireta e despretensiosamente, mas com vivo fascínio. Talvez me fizessem imaginar, ter curiosidade. O certo é que não sei dizer por que guardei desde então a referência. Quando, em 1995, mudei-me para Belém, a instituição já não existia. Eu não a conheci.

 Simulacro verdadeiro* - Este personagem faz referência tanto ao desdobramento da narrativa enquanto ficção, enquanto jogo imaginativo livre e inusitado, enquanto jogo alegórico, metafórico; quanto, no que diz respeito à intenção filosófica do romance, ao diálogo que pretende estabelecer com a tradição. Platão, filósofo que condenou a mimesis artística tratando-a como simples imitação, relacionou-a a simulacro, isto é, sombra, aparência, algo distanciado da verdade, características que são também atribuídas ao mito pela mesma tradição esclarecida. Libertar o simulacro, o qual fora aprisionado pelo lógos (razão), instrumento que desencantou o mundo (veja o relato de Cérbero), privando-o dos deuses e forças míticas, é tarefa que só um louco como Dr. Lutero Dias e seus companheiros poderiam fazer. A consequência é a reabilitação do mito, do sonho, da imaginação e do fantástico como formas de pensamento. Se Dr. Lutero Dias conseguiu tal feito, então talvez se possa dizer, numa apropriação às avessas de Os irmãos Karamázov acerca da inexistência da imortalidade, que “tudo está autorizado”. Entenda-se isto como se quiser, mas também numa acepção do fazer literário, ou numa referência ao imaginário enquanto abrigo do mito, enquanto indiferença ante as exigências do lógos. Entenda-se também, neste sentido, como uma referência ao imaginário amazônico frente às exigências da cultura hegemônica, esclarecida, Ocidental (observem no relato de Cérbero a pequena referência a certa criatura por ele devorada: uma criatura de cabelos vermelhos e pés virados para trás, conhecem?).

 4 – Surrealismo

 Não me considero surrealista.

 5 – Observações

Quando concebi o Albergue as questões acima mencionadas me eram caras. Hoje, seis anos depois, nem todas permanecem assim.
Espero ter ajudado, mas ressalto que tais informações apenas apontam caminhos. Elas não são a interpretação do romance. Esta, como sabem, cabe ao leitor e ao crítico.


* Há, evidentemente, mais personagens, mas me parece que os outros são perfeitamente assimiláveis no próprio contexto.