domingo, maio 27, 2007

SINE QUA NON II

Imagem retirada da internet
Dois raios não acharam de brilhar justamente no porão de sua Notre-Dame? Ante o primeiro, o homem criou o aparelho, a geringonça. Ante o segundo, quis mostrá-la à praça e ao mercado. Saiu à noite quando tudo era silêncio. Deserto. Silêncio. Deserto. Passos inaudíveis na calçada. Deserto. Escolheu a árvore ideal: raízes longas, frondosa... Árvore ideal. A geringonça precisava de raízes profundas. O homem, de sombra farta. Árvore ideal. Instalou-se no obscuro da sombra quando a noite ainda era grande. Alta. Altíssima. À geringonça fez funcionar. Uma maravilha, a geringonça a funcionar! Quando, pela manhã, os olhos da praça e do mercado se abriram, lá estava a maravilha. E nada mais viam senão à maravilha da geringonça. E a olharam admirados. Pasmados. Maravilhados. Extasiados...
Por que, homem, por quê? Por que tinhas de deixar tua Notre-Dame?
E os dias, muitos dias, transcorreram sem que se percebesse qualquer outra coisa. Mas alguém, um da praça, bocejou. E logo outro, do mercado. Em pouco a praça e o mercado bocejavam em uníssono ante a maravilha da geringonça. Então sobreveio a desgraça...
Por que, homem, por quê? Por que tinhas de deixar tua Notre-Dame?
Sobreveio a desgraça: os bocejantes quiseram ver algo mais na geringonça, quiseram ver-lhe a alma, a origem. Por que, homens? Foi quando os olhos da praça e do mercado encontraram o homem à sombra, recolhido, como se ainda na obscuridade de sua Notre-Dame. Mas lá não mais. O homem (Por que, homem?) decidira ter com a praça e com o mercado. E os olhos quiseram ver a essência da geringonça maravilhosa. E os olhos cravaram-se impiedosos no homem à sombra. O homem recolheu-se ainda mais. Os olhos o pressionaram com violência. O homem pensou em fugir. Tarde. Muito tarde. Tarde demais. Os olhos da praça e do mercado o derreteram ali mesmo sobre a raiz da árvore frondosa, cópia insustentável de sua Notre-Dame.
Por que, homem, por quê? Por que tinhas de deixar tua Notre-Dame?

quarta-feira, maio 23, 2007

SINE QUA NON I

Imagem encontrada na internet
O homem não casou. Não teve namoradas. Não foi a festas. Não teve amigos. Não seguiu movimentos. Não compôs turmas com os de sua geração. Passou a vida a esconder-se do mundo como se fora uma aberração qualquer. Um desastre qualquer. Mas não era feio. Não era um monstro. Refugiou-se no obscuro de sua própria Notre-Dame por puro temor. E aí teria terminado seus dias. Anônimo. E dele não se diria a ou b. E ainda que alguém o fizesse, seria apenas por uma coincidência, dessas tão comuns a ficções. O homem seria uma ficção a inspirar algum imaginativo dado a loucuras. Mas o homem decidiu sair do obscuro de sua Notre-Dame. O homem quis ter com o povo. O homem quis vir à praça e ao mercado. Dois raios luminosos não acharam de brilhar justamente no porão de sua obscuridade? Ante o primeiro, o homem criou o aparelho, a geringonça. Ante o segundo, decidiu mostrar a criação aos olhos da praça e do mercado. Por que, homem, por quê? Por que tinhas de deixar tua Notre-Dame?

sexta-feira, maio 04, 2007

A ORIGEM DE NOSSA CIDADE


Nossa cidade sopra afinal a poeira de séculos e volta a respirar o ar fresco dos visitantes.
Por que será que as pessoas sempre andam ao sabor das novidades? Penso aqui comigo, ao ver tantos visitantes, se ficaríamos realmente felizes caso fôssemos eternos, se tudo fosse eterno... E, no entanto, todos vêm aqui movidos por uma esperança na eternidade...
Mas, enfim, nossa pacata cidadela volta a ser visitada. A grande cabeça, no que tem sido considerado um milagre, piscou. Piscou três vezes, disse alguém, cuja identidade ninguém já lembra. Depois foi o disse-me-disse a correr com o vento. E agora nos vemos outra vez cercados de curiosos e metafísicos de toda espécie acampados e em vigília em torno da pedra e do poço, na praça.
Nossa cidadela está entre as mais antigas do mundo. É compreensível então que lendas envolvam sua origem, e justamente por causa da grande cabeça. Histórias vindas dos antigos atravessaram gerações sucessivas até nós. É bem verdade que as quatro ou cinco últimas, entre as quais o ceticismo ou indiferença da nossa se destaca, já não viam tudo senão como histórias inventadas por velhas parteiras e amas-de-leite, elementos da tradição que nosso povo ainda mantém, de certa forma. Histórias indignas de crédito. Por outro lado, é verdade também que a grande cabeça e o velho poço aí sempre estiveram para alimentar tal fantasia, ou quem sabe, vá lá, para confirmá-las.
Uma dessas lendas diz que, em tempos antigos, tempos que são os do começo de nossa cidade, ela recebia caravanas do mundo inteiro que aqui vinham ver e, sabe-se lá, adorar a grande cabeça. Mas, salvo as velhas parteiras, quem realmente acreditava nisso? “Nossa cidadela nem mesmo consta no mapa!”, resmungavam os jovens quando, na praça, reunidos, alguém, inspirado por aquela presença de pedra e aquele poço, decidia falar sobre nossas origens.
A verdade é que por séculos a fio vivemos de lendas sem, contudo, termos evidência para lhes depositar confiança, salvo pela grande pedra, o poço e aquele sentimento confortável de se ter uma tradição, o que para muitos dos nossos, refiro-me aos velhos, é um verdadeiro tesouro.
A principal de nossas lendas, afinal a base de todas elas, conta a história da fundação de nossa cidadela, bem como de sua fundadora, de quem, aliás, levamos o nome.
Reza que certo dia, quando uma das muitas tribos nômades que por aqui acampavam, isto quando quase todo o mundo era nômade, uma de suas moças veio, como era comum, à beira do poço apanhar água. De repente, enquanto puxava a corda, ela olhou para o fundo. Avistara um brilho diferente daquele natural à água. Lançou outra vez o balde e, quando tornou a puxá-lo, a grande cabeça veio junto, os olhos arregalados como ainda agora se vê.
E esta á a parte mais difícil da lenda - justamente o ponto que os céticos de minha geração usam como apoio para sua descrença -, pois, a considerar o tamanho da cabeça de pedra, que ultrapassa sem esforço um prédio de três pavimentos, não dá para entender como terá entrado no balde e sido puxada por uma moça. Aos olhos dos antigos, porém, tal detalhe nunca foi obstáculo, já que, como diziam, inclusive agora se ouve muito isto ante o piscar da grande cabeça, se trata de um milagre.