domingo, dezembro 09, 2007

UM POUCO DE METAFÍSICA


Sou mesmo um cão raivoso e danado: reconheço meu destino e temperamento. O que a experiência da sensaboria tem a ver com temperamento?! Mas não sou danado e raivoso no sentido que me impingiram aqueles do açougue. Não, não. Gente incorrigível... Uns à beira da morte! E pensar que eu não fazia questão de carne, nem mesmo de osso fresco! Uma carcaça ressequida de burro já me seria um manjar. Mas eles... Por isso não contive a raiva... Distribuí mordidas a deus e mundo! E as fiz correr como a serpente ao rebanho de vacas! Sei muito bem aonde vão todos... Sou como o cão escavador de fossas que encontrei à beira da estrada. Disse-me ele: “Sabe, conheço melhor que ninguém a essência humana.”.
Às vezes tenho vontade de ser um porco gordo e rosado. Mas ser um cão, ainda que em minhas condições, tem lá sua importância. Prefiro ser um cão danado e raivoso a ser um porco, principalmente após ver dois infelizes a quem se amarraram pés e mãos, por onde se enfiou uma vara e transportavam até o açougue.

quarta-feira, agosto 29, 2007

HIPERTEXTO QUASE UNILATERAL


Fotografia de Edilson Pantoja
“Posso ajudar em alguma coisa?”
“Acho que não.”
Mesmo assim ela sentou-se a meu lado na mureta que deixava nossos pés a mal tocarem a grama. Não disse mais nada. Eu também não disse. Apenas olhei na direção oposta. O vento agitou as árvores, de leve, antes de chegar a nós. Derrubou folhas. Quando passou, era todo café fresco. Pensei no caldeirão de ferro em que se torrava café. Vi mulheres em dupla à beira do pilão, o pu-pu-pu alternado das mãos de pilão. O vai-vém de ancas e saias sob a cantoria secular vinda do Maranhão. Revi o cafezal que rodeava a casa de meu avô. Ouvi-lhe a voz grave num ralho pleno de anteontem. Andei de novo à sombra das mangueiras do caminho. Pensei em pães quentes, manteiga derretida, e flechas de malva... Desconheço em que ela terá pensado. O certo é que ficamos, por todo o resto das horas, a ver o sol deslizar vermelho sobre a baía.
Nossas mãos tocam-se sobre a mureta. Nossos pés roçam a grama. A noite caiu de pára-quedas. Veio só. Se quisesse, bem poderia trazer consigo o fim do mundo...

quinta-feira, agosto 16, 2007

UM CASO FENOMENAL

Minha rara habilidade, ante a qual todos restam boquiabertos, tem uma origem insuspeitada. Quem poderia desconfiar? Nem mesmo o mais astuto dentre os circunstantes – que a todo tempo se aglomeram frente à jaula para me ver - pode supor. Eis porque, confiado na ignorância coletiva, dou-me a liberdade de gargalhar até as lágrimas. Mas não se pense que é por sarcasmo ou abuso da sã curiosidade. É que me soa divertidíssimo ver todoas essas pessoas a se acotovelarem como se diante de um milagre. Sou um milagre, confesso. Mas minha verdadeira habilidade não está no que tanto admiram: está em não revelar meu segredo! Caso o soubessem, passaríamos todos despercebidos uns dos outros. Caso o soubessem, seríamos uma banalidade qualquer. Mas, francamente, caso o soubessem, eu seria esfolado vivo... Entraria para a História na forma de um capítulo tabu.

sexta-feira, agosto 10, 2007

BATALHA NAVAL

Mal abri a janela, Mariana saltou outra vez de dentro de mim. O rosto voltado para trás a me olhar de longe, o vinco de dor mais suposto que visto entre as sobrancelhas...
Como o lugarejo de nossos dias envelheceu! Pessoas, casas e até ruas inteiras já não existem. E se eu mesmo ainda permaneço, embora entre rugas, devo àquela lembrança, bafejo de eternidade que me afaga o ser.
Mariana está sempre comigo, mas em nenhum instante tem mais cor do que quando, pela manhã, abro as janelas. Mal as abro, e ela já na distância do barco, a me ver... Então me entrego, horas, a fitar o rio e travar com ele esta nossa guerra de cinqüenta anos. E meu olhar, como se fora um canhão – desses de filmes de pirata – se põe a lhe atirar as mesmas perguntas, projéteis de minha dor: “Nunca mais? Nunca mais?”. Ao que ele, em sua carreira sem pressa, mas resoluto, como a conduzir aquela mesma embarcação, lança-me também os seus: “Nunca mais! Nunca mais!”.

quinta-feira, junho 14, 2007

A REVELAÇÃO

O homem pára de repente. Olha para o céu. Nuvens enormes ameaçam. Não há mais ninguém em lugar algum? O homem esqueceu os óculos sobre a escrivanhinha, sobre o último livro. Com os óculos, o título do livro, o nome do autor e as últimas palavras lidas. Todas as palavras lidas. Todos os livros. Todas as coisas. O homem é o último. Demorou-se justamente por causa do livro, e agora, sob as nuvens, a rua deserta, já não sabe do que tratava. Todos se foram enquanto lia. Como pôde esquecer dos óculos? Agora só uma coisa interessa. A fuga. É preciso fugir. O homem quer voltar e apanhar os óculos, relembrar o esquecido – o que mais esqueceu?, mas é preciso fugir como os outros, como todos. E, no entanto, só. É preciso, máxima urgência, abandonar-se de vez.

sábado, junho 02, 2007

UM CERTO GIGANTE

Chalé do senador Antônio Porphirio, em Icoaraci - Imagem retirada da internet 
O velho chalé da terceira rua caiu ontem à noite ante o temporal. Chuva impiedosa. O cata-vento, por um milagre, não foi junto. Rodopiou feito louco. A gente de longe a ouvir-lhe a fúria, quem sabe o lamento... Vai ver as coisas também não sentem?
A história do chalé meu pai inventou pra mim. Eu perguntara ao ver, primeira vez, o chalé, o cata-vento enorme no quintal: “Pai, quem mora nessa casa?”. E ele, o jeito sério com que sempre me inventava histórias, falou de D. Quixote, de Sancho Pança, do cavalo Rocinante, da princesa Dulcinéa. Das aventuras do cavaleiro contra os moinhos de vento, enfeitiçado por Malfatto. Nos fundos do chalé, o último dos gigantes, justamente aquele que D. Quixote domesticou. Meu pai não existia!
Papai viveu o mito da geração beat. Tinha a imaginação solta, coisa que se esforçou para me deixar como herança. Falava de Kerouac como de um amigo íntimo. Citava passagens, descrevia cenas de On the Road. Coisas que só entendi bem depois que ele se foi, depois que me tornei íntimo de sua pequena biblioteca. Foi quem me revelou a fonte de suas histórias, de seu muito fantasiar, da herança intencionada... Como na vez em que, a misturar Kerouac com Cervantes, e mais o que sua liberdade imaginava, tomou o Rocinante de brinquedo que me dera, e a fingir uma Harley Davdson, a quem acelerava pelas orelhas, saiu com essa: "... e escondeu um punhado de cânfora no tanque de sua Harley". Meu pai não existia!
Coisas que vêm à luz com a queda do velho chalé. Com a resistência de um certo gigante...
_____________________________________________________________________________________
P. S.: Dedicado a Diovvani Mendonça, poeta que muito admiro, e que me falou do concurso da Revista Piauí para o qual compus este conto. Infelizmente, o prazo já se tinha esgotado. A intenção, contudo, não tem prazo de validade. Grande abraço, Diovvani! Fica também a dica para o concurso, que é mensal. Confiram!

domingo, maio 27, 2007

SINE QUA NON II

Imagem retirada da internet
Dois raios não acharam de brilhar justamente no porão de sua Notre-Dame? Ante o primeiro, o homem criou o aparelho, a geringonça. Ante o segundo, quis mostrá-la à praça e ao mercado. Saiu à noite quando tudo era silêncio. Deserto. Silêncio. Deserto. Passos inaudíveis na calçada. Deserto. Escolheu a árvore ideal: raízes longas, frondosa... Árvore ideal. A geringonça precisava de raízes profundas. O homem, de sombra farta. Árvore ideal. Instalou-se no obscuro da sombra quando a noite ainda era grande. Alta. Altíssima. À geringonça fez funcionar. Uma maravilha, a geringonça a funcionar! Quando, pela manhã, os olhos da praça e do mercado se abriram, lá estava a maravilha. E nada mais viam senão à maravilha da geringonça. E a olharam admirados. Pasmados. Maravilhados. Extasiados...
Por que, homem, por quê? Por que tinhas de deixar tua Notre-Dame?
E os dias, muitos dias, transcorreram sem que se percebesse qualquer outra coisa. Mas alguém, um da praça, bocejou. E logo outro, do mercado. Em pouco a praça e o mercado bocejavam em uníssono ante a maravilha da geringonça. Então sobreveio a desgraça...
Por que, homem, por quê? Por que tinhas de deixar tua Notre-Dame?
Sobreveio a desgraça: os bocejantes quiseram ver algo mais na geringonça, quiseram ver-lhe a alma, a origem. Por que, homens? Foi quando os olhos da praça e do mercado encontraram o homem à sombra, recolhido, como se ainda na obscuridade de sua Notre-Dame. Mas lá não mais. O homem (Por que, homem?) decidira ter com a praça e com o mercado. E os olhos quiseram ver a essência da geringonça maravilhosa. E os olhos cravaram-se impiedosos no homem à sombra. O homem recolheu-se ainda mais. Os olhos o pressionaram com violência. O homem pensou em fugir. Tarde. Muito tarde. Tarde demais. Os olhos da praça e do mercado o derreteram ali mesmo sobre a raiz da árvore frondosa, cópia insustentável de sua Notre-Dame.
Por que, homem, por quê? Por que tinhas de deixar tua Notre-Dame?

quarta-feira, maio 23, 2007

SINE QUA NON I

Imagem encontrada na internet
O homem não casou. Não teve namoradas. Não foi a festas. Não teve amigos. Não seguiu movimentos. Não compôs turmas com os de sua geração. Passou a vida a esconder-se do mundo como se fora uma aberração qualquer. Um desastre qualquer. Mas não era feio. Não era um monstro. Refugiou-se no obscuro de sua própria Notre-Dame por puro temor. E aí teria terminado seus dias. Anônimo. E dele não se diria a ou b. E ainda que alguém o fizesse, seria apenas por uma coincidência, dessas tão comuns a ficções. O homem seria uma ficção a inspirar algum imaginativo dado a loucuras. Mas o homem decidiu sair do obscuro de sua Notre-Dame. O homem quis ter com o povo. O homem quis vir à praça e ao mercado. Dois raios luminosos não acharam de brilhar justamente no porão de sua obscuridade? Ante o primeiro, o homem criou o aparelho, a geringonça. Ante o segundo, decidiu mostrar a criação aos olhos da praça e do mercado. Por que, homem, por quê? Por que tinhas de deixar tua Notre-Dame?

sexta-feira, maio 04, 2007

A ORIGEM DE NOSSA CIDADE


Nossa cidade sopra afinal a poeira de séculos e volta a respirar o ar fresco dos visitantes.
Por que será que as pessoas sempre andam ao sabor das novidades? Penso aqui comigo, ao ver tantos visitantes, se ficaríamos realmente felizes caso fôssemos eternos, se tudo fosse eterno... E, no entanto, todos vêm aqui movidos por uma esperança na eternidade...
Mas, enfim, nossa pacata cidadela volta a ser visitada. A grande cabeça, no que tem sido considerado um milagre, piscou. Piscou três vezes, disse alguém, cuja identidade ninguém já lembra. Depois foi o disse-me-disse a correr com o vento. E agora nos vemos outra vez cercados de curiosos e metafísicos de toda espécie acampados e em vigília em torno da pedra e do poço, na praça.
Nossa cidadela está entre as mais antigas do mundo. É compreensível então que lendas envolvam sua origem, e justamente por causa da grande cabeça. Histórias vindas dos antigos atravessaram gerações sucessivas até nós. É bem verdade que as quatro ou cinco últimas, entre as quais o ceticismo ou indiferença da nossa se destaca, já não viam tudo senão como histórias inventadas por velhas parteiras e amas-de-leite, elementos da tradição que nosso povo ainda mantém, de certa forma. Histórias indignas de crédito. Por outro lado, é verdade também que a grande cabeça e o velho poço aí sempre estiveram para alimentar tal fantasia, ou quem sabe, vá lá, para confirmá-las.
Uma dessas lendas diz que, em tempos antigos, tempos que são os do começo de nossa cidade, ela recebia caravanas do mundo inteiro que aqui vinham ver e, sabe-se lá, adorar a grande cabeça. Mas, salvo as velhas parteiras, quem realmente acreditava nisso? “Nossa cidadela nem mesmo consta no mapa!”, resmungavam os jovens quando, na praça, reunidos, alguém, inspirado por aquela presença de pedra e aquele poço, decidia falar sobre nossas origens.
A verdade é que por séculos a fio vivemos de lendas sem, contudo, termos evidência para lhes depositar confiança, salvo pela grande pedra, o poço e aquele sentimento confortável de se ter uma tradição, o que para muitos dos nossos, refiro-me aos velhos, é um verdadeiro tesouro.
A principal de nossas lendas, afinal a base de todas elas, conta a história da fundação de nossa cidadela, bem como de sua fundadora, de quem, aliás, levamos o nome.
Reza que certo dia, quando uma das muitas tribos nômades que por aqui acampavam, isto quando quase todo o mundo era nômade, uma de suas moças veio, como era comum, à beira do poço apanhar água. De repente, enquanto puxava a corda, ela olhou para o fundo. Avistara um brilho diferente daquele natural à água. Lançou outra vez o balde e, quando tornou a puxá-lo, a grande cabeça veio junto, os olhos arregalados como ainda agora se vê.
E esta á a parte mais difícil da lenda - justamente o ponto que os céticos de minha geração usam como apoio para sua descrença -, pois, a considerar o tamanho da cabeça de pedra, que ultrapassa sem esforço um prédio de três pavimentos, não dá para entender como terá entrado no balde e sido puxada por uma moça. Aos olhos dos antigos, porém, tal detalhe nunca foi obstáculo, já que, como diziam, inclusive agora se ouve muito isto ante o piscar da grande cabeça, se trata de um milagre.

segunda-feira, abril 23, 2007

O CHAMADO

Imagem retirada da internet e manipulada
A colônia acordou no meio da noite como se já fosse cinco da manhã. E não era. Tanto, que ninguém pensou em barco. Não se amolou ferro, carregou redes ou vestiu roupas de pesca. Além do mais, quando amanhecesse seria domingo. E domingo não se pensa em trabalho no vilarejo. Domingo é sagrado. Mas a verdade é que nenhuma alma permaneceu adormecida. Nem um corpo deitado. Nem mesmo os três recém-nascidos, cujo choro ajudou a acordar a todos ainda mais rápido. Um barulho infernal. Não o dos pequenos, mas aquele, vindo, vindo de onde mesmo? Seria do mar? Um navio? Mas que navio mais desesperado seria esse? Correram para a enseada. Um navio jamais estivera na enseada. Nem poderia. Não havia canal. Então é isso! Haveria um navio encalhado na enseada? A noite escura não deixava ver. Se havia um navio na enseada, tinha todas as luzes apagadas. Mas, espere! O barulho não vinha do mar... Não, não vinha. Vinha, escutem!... O barulho vem da terra... Da terra? Vem do mato! O barulho vem do mato! Mas como? Sim, o barulho ameaçava romper o mato e, de uma hora para outra, atravessar a colônia. E então, ante os olhos estupefatos da colônia, a coisa atravessou o terreiro e se foi serpenteando mil vagões ao som do barulho louco. Em pouco não era mais que um zumbido longínquo perdido entre as montanhas, ao norte. Um trem também não poderia atravessar a colônia. Não havia trilhos. Por isso, embora tenha depois voltado a dormir, a colônia nada entendeu. Só eu permaneci acordado, um esforço enorme de compreender aquele desejo de ser maquinista.

terça-feira, abril 17, 2007

O RETORNO DE SADI (um texto para leitores nada resfolegantes)

Eu também voltei a Marajupema (arquivo pessoal - 2004)



I

Mestre Ambrósio acordou e ficou ali, pestanejando no escuro, a trovoada açoitando a palha de ubim na cumeeira, os trovões quebrando a casca da noite...
Janeiro chegava com força.
Mestre não levantou. Vontade, até que teve. Mas disposição, cadê?, naquele frio enorme que a ventania empurrava parede adentro pelas brechas da palha? O pensamento toldado dentro de si, denso como a enxurrada que a tudo arrastava no terreiro, maior que a noite, talvez. Já enrolado no lençol, deu pelas beiras da rede e as puxou sobre o corpo. Apenas o rosto quis descoberto. Permaneceu embrulhado, imóvel, escrito um casulo, não fossem as pestanas que se mexiam, olhando aquele nada-escuro... Não ouviu quando um galo bateu asas e cantou no galinheiro, nem quando um grilo, quase debaixo da rede, no canto da parede, entre as palhas, cricrilou em louvor da noite grande. Nem mesmo à laqüera dos cachorros, encegueirados nalgum bicho corredor, ouvia. E cachorro ora corria, ora acuava, ora apanhava...
Mas mestre Ambrósio a nada disso pode assuntar. Insônia. Há muito que acordara. Um sonho lhe roubando o sono a custo conseguido e o deixando naquela cuíra. Quis ligar o rádio, saber da hora, mas não se moveu. O corpo mumificado pelo cismar entiriço, o chiado da chuva na folhagem. Os trovões ribombando mundo afora, rio acima, os céus fecundando um inverno novo nas cabeceiras. Todo cuíra era o Mestre. Na memória um lampejo, vaga recordação do sonho ladrão: via-se (dormira mesmo?) numa agonia, num desespero sobre o rio, que espumava e corria dando voltas em torno de si mesmo, fugidio. Loucura. Possível? Homem e rio fugindo um do outro. Tudo muito nebuloso, como são os sonhos. Só a areia do porto, branquinha-branquinha entre o verdume das árvores, conseguiu fixar. Ainda quis perguntar sobre o sentido daquele sonho, mas sabia, de antemão, não ser necessário. Não precisava daquela pergunta. Bom seria se precisasse. Ah, quem o dera! Mas não precisava. O sonho falava mesmo não era de Sadi? Tal certeza era a única claridade naquele momento. Não é que no dia anterior, descido da mesma carruagem de mistério em que desaparecera, Sadi tornara a Marajupema? A idéia de que descera de alguma carruagem partiu de Peixe-Frito. Estava na escatologia, disse. Saído de onde e com que artes - e vindo porquê, principalmente -, é o que o velho tentava espiar naquele truvo de mistérios.

II

Um risco de isqueiro rasgou um clarão na noite para as bandas da casa vizinha, separada da do Mestre por um pequeno terreiro, uns pés de mamão e umas goiabeiras. Alguém acendeu uma lamparina e pigarreou. Era Peixe-Frito. Lamparina à mão, foi até a biqueira espiar a laqüéra dos cadelos. Mas o escuro não lhe quis mostrar nada. Escutou foi um grunhido feio, um cachorro a latir como se gritasse, apanhando, no rumor que parecia vir da casa de forno, caminho do porto. Quis pegar a espingarda, ir olhar o que era, mas a lanterna não tinha carrego. Além do mais, a chuva não aliviava. “Puraqué! Puraqué!, chamou, receoso, pelo cachorro que apanhava. De repente aquilo silenciou, só a chuva a chiar na palha, a cair capoeira a dentro... Pensou na “voz das muitas águas”, do Apocalipse. Andava, desde a volta de Sadi, com o Apocalipse que não lhe saía da cabeça. Matutava que tudo aquilo estivesse de alguma forma na escatologia. Ouvira seu Davi pregar certa vez sobre escatologia e se apossou da palavra. Sentia-se importante quando a pronunciava. Dela usara e abusara como símbolo de status entre os caboclos, um sinal de sua baronidade. Agora temia que aquele acontecimento tivesse mesmo a ver com o Apocalipse. Ralhou pro escuro, chamou um palavrão, querendo afastar aquela marmota. Mas o pronunciou já quase inaudível, arrependido da iniciativa. Desconjurou baixo quando um arrepio lhe percorreu o espinhaço, do nada. Voltou com passos lentos, receosos, mas querendo chegar logo ao quarto. Ao entrar observou por um instante a mulher, que dormia, agora iluminada pela lamparina. Sentiu um certo orgulho da mulher nova e bela que tinha. Deu mais dois passos, pôs a lamparina no mocho, pegou a Bíblia, sentou-se na rede. Teve, teve... Molhou o dedo na língua, começou a folhear o livro. Fez isto por longo tempo. Parou no capítulo onze do Apocalipse. Reconheceu-o por haver ali, à margem da página, um desenho feito por seu Davi. Vergou-se até bem próximo da lamparina, fixando as letras por longo tempo num misto de fascínio e temor. Fechou, deixando o dedo entre as páginas a marcar o capítulo. Pôs a outra mão no queixo, acariciando a carapinha. Na rede vizinha, Maria Lurdes fingia sono, a tudo observando por entre os cílios compridos. Mas que diacho de arte Antônio andava agora inventando, tamanha noite? Espiava... O marido imóvel como visagem, a modo olhando a luz da lamparina naquela sua luta contra a opressão da noite escura. Os cachorros voltaram a latir e correr e, de novo, a apanhar. Maria espiava o marido por trás dos cílios compridos, a enorme sombra que a luzinha projetava na parede, atrás dele, como se o espreitasse... No fundo, assustada com todo aquele alvoroço que era a volta de Sadi. Mas a certeza de que o comportamento de Peixe-Frito prometia nova presepada, a fez rir consigo, acostumada que era às tantas esquisitices do marido. Com isto e mais o chiado da chuva, que já lhe caía como acalanto, relaxou. Em pouco adormeceu. Peixe-Frito continuou sentado na rede, Bíblia no colo, mão na barbicha, cabeça na escatologia. Buscava uma explicação bíblica para aquele fenômeno. Esforçava-se para lembrar da passagem em que o profeta Elias subiu num carro de fogo. Pena que seu Davi não fizera nenhum desenho na página. A Bíblia teria, certamente, uma explicação. Para todo ocorrido neste mundo, era só abrir, procurar, e lá estavam os mais claros sinais para se interpretar o acontecido. O mundo todo cabia no Apocalipse. E o mundo todo se dividia, seu Davi lhe explicara isto, em duas grandes partes: o Bem e o Mal. Os dois numa briga sem trégua, um a querer devorar o outro, até a luta final, quando o Mal finalmente seria vencido. Tava tudo na escatologia de seu Davi. Olhou a contra-capa. Havia ali uma dedicatória a caneta, onde se lia: “Irmão Antônio Ferreira, tendes aqui o auxílio para os momentos difíceis. Que o Altíssimo vos abençoe. Rev. David Blake”. O texto era sabido de cor, gravado no exato instante em que seu Davi o leu, após escrever. Tinha saudades de seu Davi. Não tivesse morrido, agora saberia ler... Repetiu no pensamento a parte que mais gostava daquelas palavras: “Que o Altíssimo vos abençoe”. Considerou que realmente precisava do auxílio do Altíssimo. Um sinal, Altíssimo, um sinal é o que peço. Precisava de um sinal. Saberia o que fazer se lhe fosse dado um sinal. Era preciso atenção, cautela, paciência, a paciência de quem espera no mutá. Assim que amanhecesse ia na casa de Zezé, ver o afilhado. Pena que o menino tivesse doente. E o tempo não economizava... Dedo no Apocalipse fechado, os olhos distraídos na chama da lamparina já se extinguindo, ressentida pelo querosene gasto naquela vigília hermenêutica, a noite ameaçando tomar o quarto... Precisava de um sinal. Passou-se... Peixe-Frito arregalou os olhos de repente, uma compreensão a lhe iluminar o espírito. Acreditava ver o sinal que desejava: o Bem e o Mal não se degladiavam ali mesmo, sobre o morrão da lamparina à sua frente?! Mas a chama apagou-se, devorada pela noite. E no escuro, perplexo, Peixe-Frito sussurrou para si mesmo:
- O morrão era o Valo do Armagedão... – e em seguida, num acréscimo, corretivo: Não. Ainda não. É só o princípio das dores...
Mas Peixe-Frito teve que interromper o raciocínio escatológico para ouvir o que Maria Lurdes, nesse instante, balbuciava a dormir.




III

Mestre Ambrósio não assuntou o movimento em casa de Peixe-Frito. Atentasse, teria notado a luz acesa por entre as frestas da palha, a inquietação da chama de um lado a outro como se lutasse. Um pouco de atenção, por menor que fosse, lhe teria também mostrado, na casa do lado oposto à de Peixe-Frito, a inquietação de Saracura. Teria notado angústia semelhante nas casas do outro lado do terreiro em torno do qual se erguiam as casas de Marajupema. Casas de caboclo: palha de ubim, ripa, taipa... Em muitas delas, paredes só nos quartos, como pede a moradia daquela gente. O pensamento permanecia truvo. A cisma no mistério da volta. O receio no futuro. Mergulhado no desassossego, Mestre se deixou arrastar naquela correnteza medonha a rebojar dentro de si. Quis (e podia evitar?) rememorar os acontecimentos que antecederam a cena do porto, momento em que, não sabe como não teve um passamento, avistou Sadi, demanhãzinha, acocado, cavocando a areia da beira do rio com um graveto. Ainda agora, se não tivesse certeza de que era Sadi mesmo que ressonava ali na varanda, não acreditaria. E dava para acreditar? Deixara a festa logo que o ano novo entrou. Deixou-a degostoso. Antonhão e Chico Magro tinham aproveitado a boca melada de cachaça pra botarem em Zezé Moreira. Rebuliço difícil de acalmar, os dois querendo porque querendo bater no rapaz, desforrar uma rixa tempos ardida. Mestre ajudou a apartar a briga, ralhou sério com Antonhão. Como era que ele, um homem já de idade, pai de família, se metia num negócio desses? Antonhão não disse nada, mestre não sabe nem porquê. Sabe, porém, que não deve ter gostado. Quanto a isso, iria tomar cuidado. Antonhão tinha fama de traiçoeiro. Comentavam que carregava morte nas costas, que viera fugido do Maranhão. Mestre iria tomar cuidado. Apartada a briga, acompanhou a muito custo Zezé Moreira até em casa. Também melado, Zezé só falava em pegar a doze e encher a cara de Antonhão de chumbo. Foi um rebuliço difícil de acalmar. Mestre ficou em casa de Zezé ajudando Andrelina a aquietá-lo. Conversou muito, aconselhou, e foi com dificuldade que o demoveu de querer voltar e dar um tiro em Antonhão, “encher a cara daquele covarde de buraco de chumbo.” Mas Zezé afinal se acalmou. Quando finalmente dormiu, já era hora do mestre ir às malhadeiras. Desceu ao porto, tomou a canoa e subiu o rio. O dia principiava a clarear, mas ainda indeciso com que cores se vestia. Por enquanto tudo era um lusco-fusco só, uma luz-mortiça-de-dia-ainda-quase-noite, de ano-novo-ainda-meio-velho. Quem o dera que as malhadeiras tivessem peixe! Pusera uma rede na boca do Coraci e outra na margem maranhense, no remanso logo abaixo do outeiro onde ficava a capoeira de seu Tomás, debaixo das gameleiras. Eram lugares muito bons de peixe noutros tempos. E agora, fora do Coraci, mesmo naquela precisão, ainda eram os que escapavam. A despesca não fora das melhores. As redes até que, surpreendentemente, fizeram sua parte. Tucunarés, rodeiros, aracus, dois surubins purrudos. Mas os jacarés e as piranhas tinham feito desgraça. Rebentaram as malhadeiras e devoraram partes dos peixes. Era sempre assim nos últimos tempos, Deus dando de um lado, o Diabo roubando de outro. Fartura-fartura mesmo, nunca mais se soube o que era em Marajupema, que gosto tinha, desde... Ora, se nem mesmo Saracura já salgava peixe! Mantinha na puxadinha da cozinha, amontoados e pretos da tisna com que a fumaça os regava, os sacos já roídos pelos dias, o sal se derramando como se cansado de esperar pelo peixe que não vinha, sal ainda do tempo de seu Faustino... Faustino, ah!, Faustino, que fizeste que levaste contigo toda aquela fartura, meu amigo? A lembrança do velho marreteiro, trazida à tona de súbito, provocou no mestre um suspiro fundo, misto de lamento e saudade. Fosse o velho vivo, mestre Ambrósio sabia ter agora a quem recorrer. Marajupema, em quem se pegar. Quando Sadi era ainda menino, tão logo começou sua mania por barro, por santos, seu Faustino quis levá-lo a Belém para internar no Juliano Moreira. Mestre Ambrósio não deixou. Calcula agora, inconscientemente, quanto sofrimento não teria evitado... Mas logo se recobra e se consola com o pensamento de que tudo tinha mesmo era que acontecer. Que pode o homem fazer contra seu destino? E agora Sadi voltou... Mestre pisca apressado. Precisa evitar os devaneios e pensar na manhã em que achou Sadi, rememorar à procura de algum sinal, uma luz que ilumine aquela situação. Dos dois surubins ficaram só os cotós das cabeças, uma lástima! Era então querendo defumar as redes após consertá-las que ele retornava ao porto. Empurrada mais pela correnteza que pelas remadas, a canoa, a bem dizer, bubuiava. Mas não era só a canoa. Na lembrança do mestre o rio também parecia indisposto, preguiçoso, sovina até no correr, mostrando assim uma face que não era bem a sua, metido num ar mesquinho, coberto daquelas espumas que a noite formara nas cachoeiras acima e que, naquela manhã, especialmente naquela manhã, mal comparando, pareciam era uma coroa fúnebre com que se coroava a descer seu lento cortejo entre as ribanceiras, que também, naquele momento, eram como paredes duma cova, tamanha a tristeza com que se cobriam. “Te desconjuro, peste!”, diz o mestre em pensamento ao se dar conta das imagens que formara, bem como da interpretação que fazia. Viu nisso tudo um péssimo sinal. Estremeceu por dentro e sentiu os olhos marejarem quando imagens da desgraça passada lhe assaltaram... Inácia, Das Neves, Rosa...Rosa era sua afilhada, querida como filha. Mestre não quer mais pensar tais pensamentos, lembrar tais lembranças, mas elas o assaltam, cruas, vivas como quando vistas, Rosa toda comida de piranha, meu Deus... E as lágrimas crescem como a chuva lá fora. Não fosse a chuva grossa, o teriam ouvido soluçar. E agora, meu Deus?, tudo de novo? Sadi, ô meu filho, porque, porque voltaste? Porque me apareceste na beira do rio? Me deixasse querer defumar minha malhadeira, expulsar o mau-ar nelas e na água impregnado. A defumação libertava o rio. Uma defumação afastava todas as pragas do rio e de Marajupema, meu filho. É, afastaria. Também, não era desleixo passar tanto tempo sem buscar proteção? Uma forte defumação nas redes, nas casas, nos remos, canoas, espingardas, cachorros... Eu não ia mais botar as redes n’água antes de defumar. Não precisava, meu filho, não precisava que tu voltasse... E o velho chorou noite adentro em seu desespero. E o corpo se foi ressentindo daquela longa vigília, do peso daquele pensar, da força dos soluços, até que se moeu na exaustão, e adormeceu. Então sonhou com o retorno ao porto naquela manhã em que encontraria Sadi, a canoa de bubuia, o rio seguindo no cortejo. Mestre Acendeu um porronca como para se distrair dos tantos pensamentos e se foi espalhando fumaça rio abaixo. Aqui e acolá uma remada, um descansar o remo n’água, uma baforada. Olhou o estirão à frente. Na curva vista de longe as duas margens pareciam se tocar, encerrando o rio. E mestre Ambrósio pensou, consciente de que fantasiava - mas uma consciência de quem sonha - como querendo descansar do fardo mental, que o rio era só um grande lago, um açude como aquele que viu no sertão maranhense, menino ainda. Mas a lembrança logo transformou o pensamento num temor, o temor de que, como o açude que vira, o Gurupi se tornasse de vez um mar de precisão, virasse um lago de água salobra e morna, sem peixe com que aliviar a fome; que as margens, agora verdes, se tornassem um areal seco, por falta de defumação...
Mestre enrolado na rede sonhava com a volta das malhadeiras, a canoa bubuiando... Não se dava conta de que o lento bubuiar aos poucos devorava o estirão. Passou-se naquela consumição até que afinal a canoa já deslizava na dobra da curva. Logo daria no porto. Mestre olhou no fundo da canoa os peixes comidos. Pensou outra vez em defumar e consertar as malhadeiras antes de torná-las à água. Foi nesse momento, ainda na curva que encobria o porto que, do alto dum pau-de-breu, um ticã gorjeou. Mestre desconjurou, rebatendo o mau-agouro. Pensava, no escuro do sonho, ruminando os acontecimentos da manhã anterior, que não fora um bom sinal para o novo ano, tudo aquilo. Primeiro, a lástima com as malhadeiras; depois, aquele ticã, tão no cedo. Tudo então não era mesmo um anúncio do que viria em seguida? A canoa terminava a dobra do estirão. Quando o contornou, Mestre ergueu os olhos e, petrificado, sim, petrificado!, viu aquele vulto como de alguém agachado à beira d’água. O coração disparou com o susto, o sangue fugiu do rosto, Mestre numa cara-branca. Não era verdade! Não, não era! Era? Possível?! Esfregava os olhos, incrédulo, as forças fugindo. Possível?! Possível, meu Deus, possível? Uma visagem, aquele Sadi à sua frente? Aquele Sadi que agora, candidamente, como lhe fora peculiar, riscava o chão com um graveto? O susto, o passamento, não foi pela possibilidade de ser aquilo uma visagem, mas por ser uma visagem de Sadi. Quer dizer, visagem-visagem não era. Era Sadi mesmo em carne e osso! Mas como? Quantas, quantas vezes em todos aqueles anos mestre não desejara ver Sadi, mesmo em visagem, saber o que ocorrera, o porquê daquele sumiço? Morrera? Pois que aparecesse! Por que não aparecia? Nem em sonho uma resposta, pista, por mais etérea que fosse, de Sadi. Nada, em tantos anos, até agora. Daí o torpor...
- Bença, seu Ambrósio?
- De... Meu De... Deus.. te... abençoe... É tu, tu, tu mesmo, Sadi? Mas... meu... fil..., disse, a modo mundiado, a mão no beiço da canoa para não cair.
- Sou, sinhô!
Ainda agachado e riscando, brincando com os desenhos, é que Sadi falava.
- Onde tu andou, Sadi?, perguntou mestre Ambrósio, a cabeça rodando.
Não respondeu. Sadi era assim mesmo. Sempre fora. A muitas coisas e situações atento, a outras não entendia; ou, levado por algum motivo muito particular a que ninguém atinava, não dava importância. Era lerdo, o mais das vezes, como se vivesse num mundo exclusivamente seu, numa esfera que em nenhum ponto entrava em interseção com o mundo dos demais. Um aluado. “Se faz de brôco, esse filho de uma égua!”, berrava encolerizado o velho Geraldo Soares, antes de Sadi desaparecer. Não respondeu. E foi o silêncio, a candura com que riscava e o sorriso inocente que disseram ao Mestre que sim, era mesmo Sadi. Só podia ser.
- Quero barro, seu Ambrósio.
Alguma dúvida que persistisse, aquele pedido dissipou. Sim, era Sadi! Sadi! Mas como? E aquele velho pedido!
- Mas tu ainda não perdeu essa mania, Sadi? Onde tu andou, meu filho? Quem te trouxe?
- Seu Ambrósio, onde tem barro? Quero barro...
Sim, era Sadi. Deus!, o que acontecia? Que mistério tão grande era aquele? Onde andara aquela criatura, o que fizera? Perguntas... Perguntas... Perguntas... Sadi, como sempre, não responderia. Só aquele riso de criança. E apesar de tantos anos passados, Sadi, curiosamente, não demonstrava. Era tão moço quanto quando sumira. E bonito! Continuava bonito! Mais bonito? Tal observação ergueu um calafrio no espinhaço de mestre Ambrósio. Confuso, já nem mesmo lembrou dos peixes e das malhadeiras pra consertar. Só o pensamento de botar Sadi na canoa ali mesmo e rumar com ele para algum ponto deserto rio acima ou abaixo. A cabeça rodava, o coração pulava como se fosse escapulir pela boca a qualquer momento. Teria coragem de aparecer com Sadi nas vistas de Marajupema? O que diria? “Achei Sadi no porto, pessoal.” Mas quando, quem iria acreditar? Não era então fácil-fácil o tomarem por mentiroso?, que sabia do paradeiro de Sadi o tempo inteiro e agora inventava desculpa para trazê-lo de volta, apesar de tudo? Uma tempestade é o que seria tudo aquilo. Uma tempestade pesada demais para Marajupema. E o lugarejo talvez não suportasse... Mas uma velha convicção, alicerçada ainda nos tempos de marujo, quando cortava o mundo a bordo dos vapores da borracha subjugados, muitas vezes, à fúria das baías, diante de quem a força do braço, o cálculo e o plano nada podem mudar, acendeu-se no espírito do mestre. Não é que certas situações, como as tempestades, desabam sobre nós independente de nosso querer? Obras da sorte. É sorte. Nascer, viver ou morrer é sorte. E a sorte se virava na volta de Sadi. Sadi, compreendeu o mestre naquele sonho-vigília-pesadelo, estava na sorte de Marajupema. Por isto voltara. Por isto também sumira. E se voltara era porque tinha que voltar. E se tinha que voltar, de nada adiantaria adiar-lhe a volta. Nem adiantava que seu Faustino o tivesse levado ao hospício. Era a sorte. A sorte lançada. Natural, como o rio que corria pra baixo, como o céu, acima, como a mata ao redor. E tudo de repente já lhe parecia natural: o alvoroço da manhã, do dia inteiro, desde que ele e Sadi apareceram no terreiro de Marajupema. O corre-corre, os benzimentos, os passamentos, os desconjuro pra uns, os louvado-seja-Deus, pra outros. Marajupema pasmado. E queriam porque queriam que seu Ambrósio desse definição daquele retorno. Do sumiço inteiro. E o velho se pôs a contar a história tim-tim por tim-tim como tinha ocorrido. O voltar das malhadeiras, Sadi no porto. Tudo! Mas como? Sim, mas como? Então Sadi não tinha virado capelobo? Mapinguari? Já não andava pela mata assustando caçadores? Já não era (nunca fora?) passarinho como o joão-perdido? Ou tinha desvirado? Mas porque? Sim, porque? E a frase de Peixe-Frito, pronunciada ao pé da orelha do Mestre durante a confusão, boiou sibilante na escuridão, como se outra vez segredada: “Ele vortô pra se vingá de Marajupema, seu Ambrósio”. Pra se vingar? Mas Sadi lá era criatura de maldade no coração? Sim, que muitos males havia feito - e, com eles, gente que lhe quis mal -, mas não de coração. Fez muitos inimigos, é verdade, mas tudo por causa daquela beleza de Mãe D’água. Os inimigos que a inocência e o destino lhe deram, estes, sim, lhe quiseram mal, muito mal. Mas ele mesmo nunca foi de guardar mágoa de seu-ninguém. Talvez nem lembrasse, se é que chegou a ter clara consciência dos ocorridos. Sim, mas por que voltara? Mestre sabia não dispor da resposta. Buscá-la era o mesmo que querer perguntar a Deus o porquê de Ele permitir uma criatura daquela no mundo. Fato inegável é que voltara. Estava em carne e osso outra vez, ressonando na varanda. Já não era capelobo nem passarinho como o joão-perdido. Voltara. Com as bênçãos que o acompanhavam, quem sabe? Marajupema bem que precisava. Mas também com a maldição? Ambas de parelha, como dantes? “Vortô, vortô pra se vingá. Vortô pra se vingá”. Ah, Sadi, então já não basta a malária que traz todo inverno? Por que não deixar que ela, que só ela, nos leve? Acaso não dará conta? A quantos não levou das beiras deste Gurupizão de meu Deus só no ano passado? E agora mesmo vá se fazer a conta de quantos já não tão na mão dela. O filho de D. Ângela, coitadinho, mal chegou da Pará e já tá aí morre-não-morre, a mangueira que cobre o cemitério dos anjos, de olho nele, se bem que já nem anjo mais é. Sim, que mais-dia-menos-dia a bicha dará conta de todos nós. Acaso vieste em seu auxílio? Porquê? Já não anda consumido por demais este povo, meu filho? Sadi salta de repente no juízo do Mestre, o rosto aberto num sorriso. Não o Sadi que agora voltava, mas o que se fora. Serão os mesmos? Aquele que nas bocas-da-noite ouvia o Mestre contar estórias. Meu padrinho, agora conte aquela de quando os bichos falavam... Ainda gostará de estórias? Um desassossego, é o que era aquela sua volta. Um novo fustigar de entranhas. E esse mistério... Ah, quantos anos, Senhor-nosso? Quantos anos sem um cristão lhe botar os olhos, os ouvidos! Nem um piado, um estalar de folha seca no chão, de Sadi! E agora... Lá não estava ele outra vez, rente à água, riscando e pedindo barro? Ah!, e depois do sumiço Marajupema não foi revirado dos pés à cabeça? Houve então capoeira, moita, coivara, tronco de pau a quem não se perguntasse por Sadi? O rio, talhado por canoa de riba a baixo, do Pará ao Maranhão, daqui pra lá, de lá pra cá, estirões a fio, perguntado por Sadi. Mas, quede sombra? Procurou-se na ilha, na cachoeirinha, no remanso das pedras, nos redemoinhos... a esperança (e o medo) de que, quem sabe, até mesmo seu cadáver pudesse brotar num rebojo (te desconjuro!)... Nada! Os homens tiveram que deixar o mato crescer nas roças, as caças quietas na mata, os peixes nadando no rio para rumarem mata adentro a bater sapopema, a assoprar buzina de chifre. O cuidado, o temor, melhor dizendo, não exigia?
A este pensamento seu Ambrósio desperta, ou sonha despertar?, puxa um suspiro fundo, um quê ácido de mágoa lhe queimando a alma. Pois se Marajupema procurava por Sadi, se o queria achar, sabia o mestre, não era por amá-lo, mas por que perdê-lo poderia desaguar no fim dos dias fartos, como sempre se soube. Sadi abençoava o lugar. E, que nada! Quem viu sombra? Não era deste mundo. Disso todo mundo sempre soube. Sadi tinha alguma merecendência do céu. Não, não era, nunca foi gente como as que pisam este chão. Aquela sua beleza, aquela sua inocência – escritinho um passarinho -, aquele seu lidar com santos, aquela vocação... Sadi não protegia Marajupema? Não lhe cobria de fartura? Com ele ali a terra, a mata, o rio, acaso sovinaram alguma vez? Escassearam, escassearam? Hoje escasseiam até piaba! Cotia!, que os tempos mudam... O rio anda mascarado, estrangeiro. Mas no tempo de Sadi, ah, era ver! Quanto veado, quanto peixe, quanta mandioca! Tempo de Sadi era tempo de fartura. Por isto era aturado, apesar de tudo..., pois que não era todo agrado. A bondade que lhe acompanhava se rodeava de uns quantos desgostos. E de quantas dores Marajupema se vergou, se queixou! Mas será que nada existe de todo-todo bom? Então tudo tem que ser dado de meia, como naquela estória do tempo em que Nosso Senhor e São Pedro andavam no mundo e se hospedavam na casa do homem pobre e bondoso, que depois bastou enricar pra ficar mau? Mas sim, um dia Sadi anoiteceu e não amanheceu. De início ninguém cuidou. Sadi costumava ficar pelos barreiros. Às vezes passava três, quatro dias pelos matos atrás de barro. Mas a demora foi grande, começou a incomodar. E procura daqui, procura, gente!, Sadi tá perdido! E o tempo passou. Vai ver virou passarinho que nem o joão-perdido, virou capelobo como Caró, o índio que de tão velho e pagão virou capelobo. Sadi, agora, como Caró, vivia assustando os caçadores pela mata, comendo mosquito? Coló teve que subir num pé de pau certa vez e ali passar a noite, um capelobo espreitando em baixo. O bicho só desistiu de madrugada. Espalhou-se a notícia de que era Sadi. Vai ver que aquela sua beleza de Mãe d’Água, tão buliçosa do juízo das filhas e mulheres, agora virou feiúra de capelobo. Sadi, mapinguari? A boca no umbigo, o sopro derretendo o cano das espingardas? Ou subiu na carruagem de fogo, como o profeta Elias, no dizer de Peixe-Frito e de Seu Tomás? O certo é que sumiu. Quem ainda achava que ia ver aquele Sadi, meu Deus? E quando o lugar já se tinha acostumado, voltou. E por que voltou? Marajupema não tava melhor assim, uma ou outra dificulidade, mas sem a vergonha, sem os tristumes, sem a dor que causava? Era então o destino de Marajupema andar de jugo com o de Sadi? “Vortô pra se vingá. Vortô. É como o profeta Elias que vai vortá pra lutá com a Besta-Fera.”

IV

Foi a algazarra das pipiras e senhaçus dando nos mamões e goiabas maduros do terreiro quem avisou ao mestre que o dia, finalmente, chegava. O barulho, inicialmente distante, foi se aproximando à medida em que o velho se afastava daquele torpor de pensar. Não dormia, mas tornava de lento à realidade como quem acorda de sono intenso. Sentia-se mofino. Ficou ainda algum tempo na rede, um desconsolo na vontade... Pensou em ir ao estaleiro. Tinha que terminar o batelão de D. Ângela. O prazo de entrega se aproximava. Precisava levantar, partir uma lenha. Fez alguma força, o corpo não queria. Aquietou-se no fundo da rede, os olhos na palha da cumeeira, o dia varando pelas frestas. Começou a notar então que o barulho, antes oco e difuso, agora se concentrava em certos sons e lugares, de modo que, além dos passarinhos, ouvia também, pro rumo do caminho do porto, certamente, na lagoa, a cantoria das jias: “Ei!, Oi! Foi? Não foi. Vai? Cheguei!” Concluiu com agrado que a lagoa estivesse cheia depois do temporal caído à noite. Perto, no terreiro, uma voz granhenta ralhava: “Cuche!, porco!” Velha Pituca!, pensou o mestre com enfado. Por trás de tudo, um uivo longe de cachorro perdido no outro lado do rio. Apesar de mofino, resolveu levantar. Prendeu a rede no punho sem desatá-la e saiu do quarto. Destampado, o resto da casa já estava todo invadido pelo dia. Mestre não sabia discernir se sonhara ou se na verdade pensara a noite inteira. O certo é que sentia dores doendo pelo corpo. Voltou ao quarto, ligou o rádio, tornou a sair.
O aparelho, um Semp em armação de madeira, quantos anos acompanhando seu Ambrósio por aquelas beiras de rio?, a quantas alagadas não escapou?, jorrou, por entre chiados e oscilações de sintonia, uma música que foi um cosmético naquela face mal dormida da manhã. Era um merengue, ritmo costumeiro no horário. O ritmo sacolejado ganhou pureza e se foi esquivando por entre as palhas da parede, varando terreiro afora, se diluindo no dia num esforço de lhe tirar a careta de chumbo, de varrer aquele ar de tapera. Cupins em sobrevôos caíam por todo o terreiro causando um frenesi entre as galinhas. Mestre tomou o machado. Não tinha lenha rachada para o fogo do café. Sadi, como se descansando de longa viagem, ainda ressonava na rede estendida na varanda. E a beleza dormida, vista pelo Mestre num relance, instante em que erguia o machado, lhe doeu como se o ferro, em vez de golpear a lenha, em sua alma é que acertasse. Foi a combinação da face dormida com o ângulo em que se mostrou, o que cutucou, na alma do Mestre, coisas que há muito, muito tempo, relutante, sepultara. Ah, aquela beleza! Aquela beleza gulosa que tudo reclamava para si, em quem todos os olhares se tinham mundiados, e que a tantas moças e mulheres roubara o juízo e a tantos maridos a paz, agora prendia o olhar do Mestre em si para arrastá-lo até a lonjura daqueles dias sombrios engolidos pelo tempo. E pensou consigo se tudo não seria agora terrivelmente regurgitado.

segunda-feira, abril 02, 2007

O HOMEM DE SOBRETUDO


Imagem retirada da internet e manipulada
Quando acordei o homem de sobretudo preto me olhava num ar interrogativo e paciente. É curioso que sua interrogação se mesclasse àquela paciência, mas foi esta minha impressão. Tomado pela surpresa, fechei os olhos. Contei até dez. Abri. O homem ainda estava lá. Não mais assim, tão perto. Recuara até o canto da parede. Era de onde, a mesma mescla de humor, ainda me olhava. Agora, caramba!, como digo isso? Bem, não é que ele estivesse escorado à parede... Ele estava na parede. Ele era a parede. Ou pelo menos um com ela. O sobretudo e o chapéu pretos - o corpo e a cabeça do homem - acompanhavam as linhas escanteadas. O homem era o próprio canto. As metades do seu corpo perpendiculares de fora a fora, a reta no meio, como as duas paredes. Fechei o olho e dessa vez cheguei a cem. Abri, mas o fiz diretamente para o teto. Só aos poucos deixei a vista descer até me deparar com o bico do chapéu. Putz!, ele ainda estava lá. Atinjo agora a casa dos oitocentos e cinqüenta e, sinceramente, não sei o que fazer se, chegando aos mil, abrir os olhos pela terceira vez e ainda me deparar com esse louco.

terça-feira, março 13, 2007

Olhos de ribeirinho-não-mais-e-ainda-sempre

O menino, a lembrar um socó na beira do rio, equilibra-se, como o pássaro nos galhos secos dum pau caído, sobre a guia entre a ciclo e a rodovia. Um mísero espaço quase-seguro rente à bocarra descarnada do perigo. O socó sai do galho quando uma piaba reboja à flor d`água. O menino, quando o sinal cor-de-esperança fecha e o cor-de-sangue abre. Ambos têm um nada de tempo. O socó voa, mergulha e retorna ao galho. Piaba no bico. O rio respira a paz no silêncio dos estirões. O menino salta da guia para o asfalto. Malabares enormes na mão pequerrucha. O asfalto respira o ar quente das máquinas tensas ao sol do meio-dia. Às costas do menino, que se atrapalha com as peças, o sinal cor-de-medo acende.

domingo, março 04, 2007

A INSÔNIA DE JUDAS


Judas dorme na rede? Bem, isto não é importante. Cama, chão ou rede, a verdade é que Judas não dorme. Passa a noite a virar-se de um lado a outro, o suor a correr no pescoço entre nuvens de mosquitos pontiagudos como pragas do Egito. Judas não tem mosquiteiro nem ventilador. Pensa nos versos do salmista: “Deito-me e pego no sono; acordo, porque o Senhor me sustenta” e o inveja. Não é uma inveja má, se é que existe inveja que não seja má. É que inveja mesmo Judas sente é em relação a outras coisas. Diante daquela mansão do clérigo, por exemplo. Nossa, de quem é esta casa?, perguntou boquiaberto. É do clérigo, alguém respondeu. Caramba!, onde o clérigo arrumou tanto dinheiro? A casa um esplendor. Três pavimentos em estilo moderno num condomínio de luxo. Quatro carrões na garagem. E o jardim? Lembra o paraíso. O clérigo e sua mulher, seminus à beira da piscina, são como Adão e Eva no Jardim do Éden. A mansão celestial. “Jerusalém, que bonita és! Ruas de ouro, mar de cristal!”, volta a musiquinha no juízo de Judas, que sua e se abana sem sucesso contra o calor e os mosquitos. A noite não passa. Judas levanta-se. Caminha até a janela. Abre. Dá de cara com hordas de mosquitos a entrarem num sopetão como soldados de Herodes. Olha pro céu de repente. Conta estrelas. Uma, duas, três, quatro... trinta. Trinta estrelas brilhantes, como as trinta moedas de prata que ganhou, preço da traição. Judas suspira. Trinta moedas.... Mas o que foi que eu fiz?, diz para si enquanto, o coração cheio de inveja e arrependimento, pensa no clérigo, que certamente soube vender o Mestre por preço infinitamente melhor.

domingo, fevereiro 25, 2007

O Mal de Ester


Ester era crente e amava a Deus com todas suas forças. Sim, porque há os que crêem com todas as suas forças e não o amam, e os que o amam e não crêem com todas as suas forças. Há ainda os que com todas as suas forças nem crêem nem o amam. Mas Ester, não. Ester era exatamente aquilo. Ester era linda e queria casar. Orava a Deus todos os dias por um marido que lhe fosse digno. Orava e jejuava e fazia campanhas. Ester era voluntária e tudo fazia para agradar a Deus. Sabia em detalhes a história da outra, esposa do rei Assuero que dominou cento e vinte províncias, da Índia à Etiópia. E a tinha por heroína. Queria ser como ela. Fiel a Deus e ao marido que esperava ganhar. Mas um mal, que a rapariga repudiava com todas as suas forças, embora sem sucesso, plantou-se em sua pureza. E, por ele, temia não ser mais digna de Deus e do marido digno. Ester duvidava, vez por outra, malgrado seu, de que fosse necessário ofertar tanto dinheiro ao Senhor e ter nisto o termômetro de sua fé. Abatida nos momentos de remorso e culpa, Ester se sentia a pior entre os filhos de Deus, próxima dos de Belial. E já não orava a Deus apenas pelo marido, mas por um livramento. Ester tornara-se cativa de Nabucodonosor.

---------------------
P. S.: Criei três historinhas de inspiração bíblica. No topo do Ararat
, já vimos. O Mal de Ester é a segunda e há uma terceira, chamada A Insônia de Judas, que vem por aí. Trilogia? Nome pomposo demais. Quanto ao manuscrito do Sagaz e Destemido, temo publicação. Trata-se de um texto inconcluso de aproximadamente dez capítulos, o que vai exigir do leitor um acompanhamento e uma expectativa de final, que não há (ao que tudo indica, o pote encontrado por Seu Afonso na Serra Grande continha apenas parte da narrativa, de modo que é muito plausível supor a existência de outros até agora enterrados e perdidos). Daí minha resistência em publicá-lo. Bom, mas quem sabe depois da tal trilogia? Abraço forte em todos!

terça-feira, fevereiro 20, 2007

No topo do Ararat

Arca encalhada no topo do Ararat, Noé, mãos cruzadas nas costas e chinelos bíblicos, caminha no convés a respirar o estio. O sol alveja ainda mais a barba e cabelos do velho patriarca, que quase se confundem com as nuvens do horizonte. Enquanto o vento lhe balouça o vestido, o ancião de seiscentos anos aprecia o porvir. De repente, tira do bolso uma bilha de vinho, primeira safra de sua primeira plantação. Retira a rolha e sorve, por um instante maior que quarenta dias e noites, o aroma do velho mundo. Lá de dentro, o balido das cabras, mugido de vacas, gritos de macacos e outros bichos mais, lhe dizem que os filhos não lhe ouvirão, ainda que grite. Então retira de outro bolso o walkie-talkie e faz contato com Sem, na sala das máquinas: “Toda a potência de todos os seis mil cavalos!”. O filho não entende, mas obedece. Um segundo depois, o contatado é Jafé, o timoneiro: “Vire a estibordo, vamos desencalhar!” Finalmente dirige-se a Cão, que, de compartimento em compartimento, distribuía feno e limpava a sujeira dos animais como castigo por ter visto o pai bêbado e nu, certa feita. O filho estava no primeiro pavimento: “Venha ao convés!”. Instantes depois, pai e filho brindavam, reconciliados. Desfeito do pesado vestido, Noé foi tomar sol apenas de ceroula. Respeitoso, o filho não o olhava, mas o coração de ambos seguia em paz enquanto, a todo vapor, a arca livrava-se do Ararat.

quarta-feira, fevereiro 14, 2007

O Mambembe

- Mas... E tua família? Tu tens família lá em São Paulo, não tens? Ou sempre foste assim, só, e de um lugar para outro?
- Tive... Você quer ver? Ligue para esse número. Pergunte por mim.
...
- Alô?
- Alô! Bom dia! Eu sou amigo de cicrano. Tem um tempo que não falo com ele. Ele se encontra?
- ... Quem deseja?!
- É fulano. Sou amigo de cicrano. Queria falar com ele. Você é a esposa dele?
- Olha, moço, cicrano... faz muito tempo que ele não dá notícia. Não sabemos nada dele...
- Desculpe! Obrigado!

Devolve o papel com o número de telefone para o ator, que o recebe a esconder o rosto e os olhos úmidos.

terça-feira, fevereiro 06, 2007

O SAGAZ E DESTEMIDO: A HISTÓRIA DO MANUSCRITO


Meu primeiro contato com a história do Sagaz e Destemido ocorreu em dezembro de 1979, através de seu Afonso, velho pescador de Marajupema, com quem eu gostava de passar férias escolares. Era madrugadinha. Salpicado de espuma, o rio deixava subir aquela neblina fresca de tranqüila evaporação. Íamos despescar as malhadeiras, redes de pesca, da boca do Coraci, cerca de um quilômetro acima do porto. Seu Afonso na frente, eu no piloto do casco. Entre uma e outra baforada do porronca, cigarro brabo, e algum descanso do remo na borda, falou do vaso que, tempos atrás, bote tempo, encontrara enterrado na Serra Grande. Dentro, tabuinhas de argila onde se cunhara ou pintara estranhas letras. Seu Afonso era experiente, íntimo das visagens de fora-de-hora. Me falava vez em quando das coisas que via. Os mistérios.
Falou da tradução feita por Tanurú, um kaapor seu amigo lá de cima, das aldeias. Depois, em casa, ante a insistente curiosidade de meus dez anos, mostrou-me, cheio da cerimônia com que sempre mexia nos guardados ou defumava as malhadeiras, mostrou-me uma, só uma, das tabuinhas. Vi a escrita e, de longe, o velho vaso sujo de tempo.
Mostrou também o que, ouvindo a tradução oral de Tanurú, garranchou a lápis no velho caderno de fiados da cachaça, querosene, açúcar e coisas mais que vendia aos caboclos. A história ficou. A lembrança junto com a dúvida. Passou-se.
Mas em 1997, quando Diários Índios foi lançado, livro onde Darcy Ribeiro narra a viagem que fez em 1950 às cabeceiras do Gurupi, inclusive, a passagem por Marajupema (p. 79), eis que me aparece ninguém mais, ninguém menos, que Tanurú, a quem Darcy Ribeiro chama carinhosamente de intelectual índio: “Esse Tanurú é outro caso extraordinário de um intelectual índio. Pequenininho, feio, tem uma mente luminosa. Domina, como ninguém, o patrimônio mítico de seu povo e é capaz de dizê-lo da forma mais clara e sensível. Aprendi com ele, com Anakanpukú e outros índios com quem trabalhei, a apreciar e admirar esses intelectuais iletrados. Eu os conheci também entre lavradores e pioneiros pobres, ainda que menos vivazes, porque dominados pela idéia de que os saberes pertencem aos doutores. Intelectual, para mim, é pois aquele que melhor domina e expressa o saber de seu grupo” (p. 546).
Pois, sim, anos depois, dado meu interesse pelo mito de Atlântida, mito cuja fonte ocidental mais remota é o Timeu, de Platão (séc. V a. C), me deparei com um livro de Berlitz onde, numa das páginas (138), se mostra, para efeito de comparação, antigos escritos encontrados no Vale do rio Indo (Paquistão, Ásia), e escritos, também antigos, achados na Ilha de Páscoa, datados de não poucos milhares de anos. A ilha de Páscoa fica no oceano Pacífico e pertence ao Chile! A escrita que vi na tabuinha, lembro bem, tem grande semelhança com as destes escritos...
Com isto quero advertir que nem a história a seguir, nem o texto, são meus. Eu os recebi em 2004, quando, após vinte anos sem ir a Marajupema, lá tornei para rever parentes e velhos amigos, pouquíssimos, ainda vivos. Seu Afonso, desde os anos noventa, não mais entre eles. Antes de morrer, entregou a meu padrinho, hoje com noventa anos e muito parecido com mestre Verequete, um pequeno embrulho e o pedido de que não se o abrisse e só a mim fosse entregue, caso lá voltasse. A gente antiga, sabe-se, costuma respeitar essas coisas. Ainda mais se recomendado por seu Afonso...
Devo dizer que apenas tomei a liberdade de, não sabendo como escrever ou pronunciar o estranho nome do Sagaz, chamei-o pelo que mais próximo me pareceu. A história, como à frente se verá, foi escrita por um dos que o acompanharam (como Lucas a Paulo) e cujo nome também alterei. Sobre o manuscrito de seu Afonso, é triste dizer que, dia desses, a moça, desavisada que é, julgou sem importância o velho e roído caderno encontrado no chão, rente a minha mesa, e não pensou duas vezes antes de juntá-lo ao lixo. Eu, que terminara de digitar o teor e saí para algo ligeiro, ainda fui à frente da casa remexer a lixeira, quando retornei. O caminhão já havia passado. Paciência.
Paciência que também peço a ti, leitor, caso estranhes o estilo um tanto empolado ou imperito para teu gosto, alguma extravagância de humor e coisas mais. Não os imputes a mim, mero copista, mas a qualquer dos três - ou ao conjunto - que antes se envolveram com a história: Tanurú, responsável pela tradução; seu Afonso, que a fixou nos garranchos; e O Lendário, que consta ser o escriba original.


P. S.: Por razões de espaço, publicarei aqui apenas esta introdução à História do Sagaz. Abraço a todos!

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

O Imortal


Era meio-dia e meia quando os dois chegaram. Encostaram-se no muro, próximo do largo portão. O mais velho arriou sua forma de isopor na calçada, no que foi imitado pelo mais novo. Logo a carícia no ombro marcado pelo náilon. Ficaram ali, atentos aos que entravam. E como mais de uma hora se passou desde que chegaram, dividiam um picolé. De repente o mais velho cutucou o outro.

- É aquele ali!
- Qual? Aquele?
- Sim, quem mais? Esse mesmo, de flor na orelha e jeans. O imortal. Ih! Disfarça, ele tá olhando pra cá! Quer ver se alguém lhe segue. Puxa! Demos sorte, mesmo!
- Não acredito! Tem certeza de que é esse? Eu juro que não acredito! E acho que não quero mais ver... Vamos embora?
- O quê?! Desistir agora, depois de tudo?!
- Desculpa, mas acho que tô com medo...
- Não te preocupa. Ele não faz mal a ninguém. É sabido demais para machucar alguém. Dizem que tem dois mil e quinhentos anos.
- Quem diz?
- Ah!, não lembro! Dizem por aí.
- A história da água?
- Sim. A história da água... Ele bebe a si próprio. Sempre. Por isso não morre. Olha!, tá virando a esquina que dá para o horto. Vai ser agora! Pshh! Vem, vamos lá. Vamos ver. Não vais acreditar. Eu também não acreditei quando vi a primeira vez.
- Tô tremendo. Acho que não vou conseguir olhar. Vou fechar os olhos.
- Não! Abre! Olha lá! Não falei? Ele tá se engolindo... Meu Deus!
Enquanto o imortal se engolia, os meninos, perplexos, vomitavam o picolé.

sábado, janeiro 27, 2007

Particularidades

Primeiro, ela chorou, rápido. Uma lágrima, não mais que uma, brilhou num canto de olho, sem molhá-lo. A cara logo séria, as pupilas pressionadas para trás e para cima, contra as sobrancelhas, interrogativas. Olhar ao contrário. Para dentro. Depois vieram as gargalhadas, uma depois da outra, e logo todas em conjunto. Ruidosas. Escandalosas. Tanto, que ele, no alto da serra, outro lado do rio, escutou. Emoções, claro!, apenas adivinhadas. As coisas, normalmente discretas, o são ainda mais no que toca a suas particularidades. Talvez por isso ninguém mais prestou atenção.