quinta-feira, setembro 25, 2008

O homem sentou-se na pedra, cruzou as pernas e consultou as horas. Considerou ser tarde. Olhou a pedra sob o corpo. As nuvens acima. Suspirou. Ao longe, alheio àquele homem entre pedras e nuvens, um pássaro voou.

terça-feira, agosto 19, 2008

ANIVERSÁRIO-SURPRESA PARA NETUNO

Do sol, apenas meia laranja se pode ver. À outra parte, devorou o mar. Sobre o arquipélago de pedras o coral de sereias repassa o último ensaio.

domingo, março 09, 2008

QUANDO TÍTULOS NÃO SÃO BEM-VINDOS


Transito por entre a multidão frenética como o morcego entre galhos do arvoredo. Se não esbarro em nada ou ninguém, devo-o à minha constituição peculiar e, sem falsa modéstia, a um talento muito especial. Não esbarro, e atendo a todos com a maior presteza. Não a maior possível, mas a maior. Não fosse por minha gravata e as sobrancelhas projetadas que me servem de barbatanas, o sucesso de meu trabalho seria inimaginável. Mas nasci assim, magérrimo e com o pescoço ideal para gravatas borboleta. Assentam em mim como em ninguém mais. Minha gravata é meu passaporte. As sobrancelhas, meu radar. Além disso, sou lépido e atento. Tenho um conjunto motor de invejável agilidade e pés que por muito pouco voariam. Na maior parte das vezes, me antecipo à intenção de quem deseja pedir algo e já lhe satisfaço. Vê-los boquiabertos é prazer indizível e minha mais grata recompensa. Não sei se isto – o antecipar-me - tem a ver com alguma arte secreta de minhas sobrancelhas, que se já me servem de radar para reconhecer corpos no espaço físico, bem poderiam também captar-lhes, no metafísico, as intenções. Mas desconfio. E pensar que em menino minha constituição e sobrancelhas já temperaram as mais gostosas gargalhadas...

sexta-feira, fevereiro 08, 2008

QUESTÃO DE FÍSICA


Imagem encontrada na internet
Enquanto não era um deles eu os observava. Eu os analisava. Eles eram ridículos em tudo. Se alguém me flagrasse com os dedos a acariciar o queixo e com as sobrancelhas franzidas, podia estar certo: eu pensava neles, eu pensava mal deles. Então, um dia, eles tiveram a ridícula idéia de me dar um cavalo. Aceitei meio sem jeito, por educação. Com um grunhido me indicaram que montasse. Por educação, montei. No primeiro galope, a que me submeteram com uma tapa na traseira do animal, me senti um deles. No segundo, eu já era um deles. Agora, como carne crua e não saio do cavalo para quase nada. Sou um deles e nos acho formidáveis!

sexta-feira, janeiro 18, 2008

SALMO 151


Gravura de Osvaldo Goeldi encontrada na internet
Quando virou a esquina o homem se desconheceu. Evidentemente, não pensou em dar um ou dois passos atrás. Ter-se-ia reencontrado, caso o fizesse. Mas sua nova condição não lhe permitiu, sequer, o raciocínio de retroceder. Então, ante o absoluto da novidade, ansiou, ímpeto inconsciente, por quem o tomasse pela mão. Ora - e isto ele também já desconhece -, mas não foi justamente para estar só que dobrou a esquina? E agora, ante ruas mal-iluminadas,  cachorros e gatos de beco, insetos de esgoto, automóveis, prédios e gente apressada, o homem, ato instintivo, despe-se e, como se fosse um nadador profissional, submerge noite adentro...

sábado, janeiro 05, 2008

UMA ESTRANHA PONTE


Porque um sujeito falaria algo inteiramente fora de propósito a seu interlocutor?
Ambos conversavam sobre castores, essa história de esconder pinhas e depois não lembrar o lugar, etc.
Terá sido por isto, por uma espécie de osmose do esquecimento [de pinhas por castores], e o sujeito esqueceu o assunto?
Às verdadeiras razões ninguém jamais chegará. É que os dois, após o despropósito, enlouqueceram. O interlocutor, pelo esforço supremo para entender o amigo. Este, ato contínuo, ao ser absurdamente recriminado pela própria consciência em decorrência do dito.
Agora, toda a cidade, que não os compreende, embora os conheça bem, vê ambos a caminharem sempre juntos, ruas e praças afora, como dois grandes amigos que se desconhecem.