quarta-feira, agosto 29, 2007

HIPERTEXTO QUASE UNILATERAL


Fotografia de Edilson Pantoja
“Posso ajudar em alguma coisa?”
“Acho que não.”
Mesmo assim ela sentou-se a meu lado na mureta que deixava nossos pés a mal tocarem a grama. Não disse mais nada. Eu também não disse. Apenas olhei na direção oposta. O vento agitou as árvores, de leve, antes de chegar a nós. Derrubou folhas. Quando passou, era todo café fresco. Pensei no caldeirão de ferro em que se torrava café. Vi mulheres em dupla à beira do pilão, o pu-pu-pu alternado das mãos de pilão. O vai-vém de ancas e saias sob a cantoria secular vinda do Maranhão. Revi o cafezal que rodeava a casa de meu avô. Ouvi-lhe a voz grave num ralho pleno de anteontem. Andei de novo à sombra das mangueiras do caminho. Pensei em pães quentes, manteiga derretida, e flechas de malva... Desconheço em que ela terá pensado. O certo é que ficamos, por todo o resto das horas, a ver o sol deslizar vermelho sobre a baía.
Nossas mãos tocam-se sobre a mureta. Nossos pés roçam a grama. A noite caiu de pára-quedas. Veio só. Se quisesse, bem poderia trazer consigo o fim do mundo...

quinta-feira, agosto 16, 2007

UM CASO FENOMENAL

Minha rara habilidade, ante a qual todos restam boquiabertos, tem uma origem insuspeitada. Quem poderia desconfiar? Nem mesmo o mais astuto dentre os circunstantes – que a todo tempo se aglomeram frente à jaula para me ver - pode supor. Eis porque, confiado na ignorância coletiva, dou-me a liberdade de gargalhar até as lágrimas. Mas não se pense que é por sarcasmo ou abuso da sã curiosidade. É que me soa divertidíssimo ver todoas essas pessoas a se acotovelarem como se diante de um milagre. Sou um milagre, confesso. Mas minha verdadeira habilidade não está no que tanto admiram: está em não revelar meu segredo! Caso o soubessem, passaríamos todos despercebidos uns dos outros. Caso o soubessem, seríamos uma banalidade qualquer. Mas, francamente, caso o soubessem, eu seria esfolado vivo... Entraria para a História na forma de um capítulo tabu.

sexta-feira, agosto 10, 2007

BATALHA NAVAL

Mal abri a janela, Mariana saltou outra vez de dentro de mim. O rosto voltado para trás a me olhar de longe, o vinco de dor mais suposto que visto entre as sobrancelhas...
Como o lugarejo de nossos dias envelheceu! Pessoas, casas e até ruas inteiras já não existem. E se eu mesmo ainda permaneço, embora entre rugas, devo àquela lembrança, bafejo de eternidade que me afaga o ser.
Mariana está sempre comigo, mas em nenhum instante tem mais cor do que quando, pela manhã, abro as janelas. Mal as abro, e ela já na distância do barco, a me ver... Então me entrego, horas, a fitar o rio e travar com ele esta nossa guerra de cinqüenta anos. E meu olhar, como se fora um canhão – desses de filmes de pirata – se põe a lhe atirar as mesmas perguntas, projéteis de minha dor: “Nunca mais? Nunca mais?”. Ao que ele, em sua carreira sem pressa, mas resoluto, como a conduzir aquela mesma embarcação, lança-me também os seus: “Nunca mais! Nunca mais!”.