quinta-feira, junho 14, 2007

A REVELAÇÃO

O homem pára de repente. Olha para o céu. Nuvens enormes ameaçam. Não há mais ninguém em lugar algum? O homem esqueceu os óculos sobre a escrivanhinha, sobre o último livro. Com os óculos, o título do livro, o nome do autor e as últimas palavras lidas. Todas as palavras lidas. Todos os livros. Todas as coisas. O homem é o último. Demorou-se justamente por causa do livro, e agora, sob as nuvens, a rua deserta, já não sabe do que tratava. Todos se foram enquanto lia. Como pôde esquecer dos óculos? Agora só uma coisa interessa. A fuga. É preciso fugir. O homem quer voltar e apanhar os óculos, relembrar o esquecido – o que mais esqueceu?, mas é preciso fugir como os outros, como todos. E, no entanto, só. É preciso, máxima urgência, abandonar-se de vez.

sábado, junho 02, 2007

UM CERTO GIGANTE

Chalé do senador Antônio Porphirio, em Icoaraci - Imagem retirada da internet 
O velho chalé da terceira rua caiu ontem à noite ante o temporal. Chuva impiedosa. O cata-vento, por um milagre, não foi junto. Rodopiou feito louco. A gente de longe a ouvir-lhe a fúria, quem sabe o lamento... Vai ver as coisas também não sentem?
A história do chalé meu pai inventou pra mim. Eu perguntara ao ver, primeira vez, o chalé, o cata-vento enorme no quintal: “Pai, quem mora nessa casa?”. E ele, o jeito sério com que sempre me inventava histórias, falou de D. Quixote, de Sancho Pança, do cavalo Rocinante, da princesa Dulcinéa. Das aventuras do cavaleiro contra os moinhos de vento, enfeitiçado por Malfatto. Nos fundos do chalé, o último dos gigantes, justamente aquele que D. Quixote domesticou. Meu pai não existia!
Papai viveu o mito da geração beat. Tinha a imaginação solta, coisa que se esforçou para me deixar como herança. Falava de Kerouac como de um amigo íntimo. Citava passagens, descrevia cenas de On the Road. Coisas que só entendi bem depois que ele se foi, depois que me tornei íntimo de sua pequena biblioteca. Foi quem me revelou a fonte de suas histórias, de seu muito fantasiar, da herança intencionada... Como na vez em que, a misturar Kerouac com Cervantes, e mais o que sua liberdade imaginava, tomou o Rocinante de brinquedo que me dera, e a fingir uma Harley Davdson, a quem acelerava pelas orelhas, saiu com essa: "... e escondeu um punhado de cânfora no tanque de sua Harley". Meu pai não existia!
Coisas que vêm à luz com a queda do velho chalé. Com a resistência de um certo gigante...
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P. S.: Dedicado a Diovvani Mendonça, poeta que muito admiro, e que me falou do concurso da Revista Piauí para o qual compus este conto. Infelizmente, o prazo já se tinha esgotado. A intenção, contudo, não tem prazo de validade. Grande abraço, Diovvani! Fica também a dica para o concurso, que é mensal. Confiram!